Um trecho do texto que apresentei na última terça-feira na Casa do Baile:
Michael Herzfeld,
em seu livro A Place in History:
Monumental and Social Time in a Cretan Town considera que “entre o tempo
social e o monumental está posto um cisma discursivo”. O tempo social remete ao
cotidiano, à experiência diária, é aberto e imprevisível. O tempo monumental,
ao contrário, é redutivo e genérico. Ele descreve eventos como realizações de
destinos supremos e reduz a experiência social à previsibilidade. Seu foco
principal é o passado, um passado constituído por categorias e estereótipos.
Nas suas formas extremas, representa o enquadramento temporal do Estado–Nação
(HERZFELD, 1991, p.10).
A reavaliação do
passado grego tem promovido a reconstrução do patrimônio clássico como caminho
para a identidade européia (p.11). Os discursos hegemônicos tendem a enfatizar
essa aproximação e simultaneamente demonizar o Oriente. Como demonstra Stavros
Stavrides em seu texto Urban Identities:
Beyond the Regional and the Global. The Case of Athens, nas Olimpíadas de
2004 enfatizou-se o duplo movimento de alçar Atenas ao padrão das grandes
cidades modernas e globais européias, ao mesmo tempo em que se enfocou a
particularidade, a “localidade” de sua identidade como “berço da civilização
ocidental”. (STAVRIDES, 2008, p. 578). Desde o princípio, já que Atenas foi
escolhida capital do nascente Estado Grego moderno, foram feitos esforços para
destruir edificações e sítios que pudessem indicar um passado complicado, cheio
de rupturas e hibridações. Apenas os monumentos clássicos e Bizantinos eram
vistos como apropriados para definir A Atenas do XIX como herdeira da Atenas
clássica. (STAVRIDES, 2008, p.579).
Promoveu-se a unificação dos sítios
arqueológicos com séria de áreas verdes e calçadas. Continuidade espacial
estabelecendo uma continuidade histórica. As qualidades únicas da cidade são
mediadas por uma teatralização seletiva do passado. Por outro lado, a
estratégia de construir a identidade contemporânea da cidade implicava em
levá-la em uma direção aparentemente oposta, pois precisava apresentar
ambientações urbanas modernas reconhecidas como similares às de outras grandes
cidades globais, familiares a turistas e cidadãos das metrópoles ocidentais.
Emprego da arquitetura de grife. Stavrides identifica dois gestos neste sentido: O teto do Estádio Olímpico, projetado por
Calatrava em contraponto aos prosfygika
(edifícios modernistas) encobertos pelo “placar” com imagem panorâmica de
Atenas incluindo os monumentos mais conhecidos. Jogaram a capa de um cenário
espetacular sobre as edificações portadoras de um vocabulário arquitetônico
considerado fora de moda. Enquanto os edifícios modernistas remetem a
apropriações e identificações que compõem a história de Atenas, a imagem do
painel remete a uma Atenas atemporal, de cartão postal para turista.
Identificado a uma cultura global de consumo. Enquanto os edifícios modernistas
remetem à racionalidade e eficiência, de custo mais baixo, o teto de Calatrava
remete a um novo universalismo, o universalismo do consumo, está focalizado na
aura do dispêndio.
Isso pode envolver a valorização e recuperação do patrimônio
de valor histórico e cultural, mas incorporado duplamente nesse movimento que o
globaliza como espaço estandartizado de lazer e consumo e que o relocaliza como
afirmação da identidade e da tradição em viés essencialista e fetichizado (LEITE,
2007, p. 292). Vemos nessa proposição uma chave importante para entender como
uma política que ainda podemos considerar “fachidista” ou “tradicional”,
perdura, ainda que reinserida numa nova lógica, o que Carlos Fortuna (1997)
denominou “conservação inovadora do elemento tradicional” (apud LEITE, 2007, p.
65). Dessa forma os vestígios do passado apresentam-se em forma de pastiche, o
que resulta num paradoxo constatado por Hartog (2013, p. 234): “(...) o mais
autenticamente moderno hoje seria o passado histórico, mas colocado nas normas
modernas. No final das contas, conservam-se apenas as fachadas”.
Esses mesmos
jogos de força em torno do patrimônio podem ser vistos no caso do relativamente
novo Museu da Acrópole. Sua abertura em Atenas (jun.2009) acrescentou uma nova
urgência ao debate de 200 anos em torno das esculturas do Partenon. Os
administradores do Museu Britânico deram uma resposta preventiva, deixando
clara sua posição de que o novo museu não mudava sua visão de que as esculturas
são parte do patrimônio compartilhado de todos e transcendem as fronteiras
culturais (MARSHALL, 2012, p.34)
Em seguida, o
arquiteto responsável pelo novo museu, Bernard Tschumi, mudou o tom do discurso
que antes era pautado pela restituição ou repatriamento cultural, enfatizando
somente um desejo de contribuir para a reunificação do Friso do Partenon. No Museu da
Acrópole as esculturas originais que ainda permanecem em Atenas são expostas em
combinação com réplicas que indicam a localização das demais porções. Em seu ensaio sobre o tema,
Athens, London or Bilbao? Contested narratives of display in the Parthenon galleries of the British Museum, Marshall (2012)
considera uma quimera a pretensão de reunir todos os pedaços remanescentes de
volta em Atenas.
A ideia de girar o relógio para trás para um tempo
referencial num agora distante passado em que as esculturas poderiam estar
completas é uma poderosa reivindicação, porém não menos utópica e fatalmente
ilusória, tanto quanto o argumento do Museu Britânico de que está qualificado
para falar em nome de toda a humanidade e reter as esculturas para o benefício
dos cidadãos globais do mundo afora. (MARSHALL, 2012, p.42)
O pavilhão no
museu tem uma parede de vidro que o coloca em diálogo com a visão do Partenon.
A arquitetura representa a intenção de reunificação das esculturas.
No Museu
Britânico o emolduramento das esculturas promove um contexto expositivo que
remete a um templo e à arquitetura do próprio Partenon, assegurando a sala Elgin como espaço
extraordinário/monumental que prova que
o museu e a civilização que o criou está à altura de guardar o patrimônio da
antiga civilização mãe. Nas transformações urbanas operadas sob este contexto,
sob a fachada da restituição cultural pode estar uma estratégia de dominação
econômica e política.