quarta-feira, 19 de abril de 2017

Exposição Universal de Chicago de 1893: imperialismo e racismo em exibição

Em preparação ao 2º seminário da disciplina optativa Museu, espaço e poder, Museu, cultura e imperialismo: tempo, espaço e relações de poder, em que um dos temas centrais serão os zoos humanos, acabei reunindo algum material sobre a Exposição Universal de Chicago de 1893, a ser abordada a partir do texto
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KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Dahomeyans: espetáculo e ciência na Exposição Universal de Chicago (1893). RESGATE - Vol. XVIII, No. 19 - jan./jul. 2010, p.122-134. 

Como aponta a autora, "Tais exibições, a princípio, vinham supostamente cumprir a função de informar e suscitar o respeito por aquele “outro”, mas teravam por incutir mais sentimentos de superioridade no branco de ascendência européia, ajudando a reafirmar teorias racistas então em voga e, assim sendo, “justificando” e “desculpando” o crescente imperialismo. O que se fazia era selecionar, colecionar, exibir, analisar, medir, classificar, retratar, descrever, controlar e arquivar os “outros” e a sua imagem. (...)Sua presença ao vivo e seus retratos eram explorados para estudos, curiosidade e diversão. Seus cadáveres eram disputados por escolas de medicina, museus e coleções." (KOUTSOUKOS, 2010, pp.123-124)


 Para adentrar um pouco mais no assunto, aos interessados indico o texto de Josh COLE,, “Culturaland racial stereotypes on the Midway”, que a autora cita. Vale ver ainda o material fotográfico disponibilizado pelo Getty Institute e uma cópia digitalizada do mapa e do Catálogo  das exibições no Midway Plaisance, a área periférica da Exposição dedicada aos povos selvagens , incluindo os daomeanos abordados no texto de Koutsoukos. 






 

domingo, 16 de abril de 2017

A volta ao mundo em 80 museus - 3. Museu da Loucura em Barbacena

Um belo texto da grande amiga e colega de UFMG, professora da Escola de Belas Artes, Rita Lages Rodrigues, a quem agradeço a colaboração. A ideia da série "A volta ao mundo em 80 museus" começou justamente em conversas informais, nas quais sempre me pareceu ser absolutamente possível que o convidado a publicar pudesse imprimir sempre seu traço personalíssimo na escrita, falasse livremente mesclando razão e emoção como bem entendesse. Eu e ela dividimos a coordenação de um grupo de pesquisa e nesse momento estamos lendo A sociedade sem relato, de García Canclini, que traz justamente uma reflexão sobre a possibilidade de pensar a partir de entrecruzamentos entre as ciências sociais e as artes. O que ela escreveu inseriu nessa equação também os traços da memória social e da experiência particular, e sendo assim atingiu em cheio o que eu desejava desde o início. Eis aí:

Histórias de família.
Ontem foi dia de visita. Em Barbacena, há muito desejava conhecer o Museu da Loucura*. Pensava nas pessoas retiradas de sua humanidade e jogadas no inferno, para ser purgatório haveria de melhorar muito. Imaginava o sofrimento, compadecia-me das almas, o discurso científico de choques e lobotomia contra o afeto e a existência. Mais de cem anos atrás, meu bisavô esteve internado por 10 anos na Colônia, menos dolorosa a palavra colônia do que asilo ou manicômio ou hospício ou casa de loucos. Não sei se como interno pagante ou indigente. Se indigente, obrigado a trabalhos forçados, escravos do século XX. A loucura não permite direitos. Por dez anos sem receber visitas. Por 10 anos. Entendi ainda mais minha avó e seu afeto imenso, apesar da dureza, por minha Tia, também posta na caixinha da loucura. Nunca permitiu internação da filha. Imaginei esse bisavô vivendo à margem, retornando após 10 anos por decisão do genro que havia resolvido ir buscá-lo. Minha bisavó já com 4 ou 5 filhos, o mais novo da idade do tempo do bisavô na Colônia, que, após o retorno do marido, engravidou duas vezes mais, tendo meu pai dois tios temporões. Pensei muito nela, na sua lida na roça, na minha avó e duas irmãs que levaram à frente a sobrevivência da família. Parece que meu tio avô não queria muito saber do trabalho. Foram as mulheres a levarem a pequena propriedade nas costas. Meu bisavô retornou e teve vida após a internação. Não sei qual marca ficou em sua alma. Nem consigo imaginar.
No segundo andar do Museu engasguei existência. Até então havia sido forte - pra quê?- mas ao ver as fotos das reportagens de 1961 e 1978 os olhos e a voz não aguentaram, os olhos cheios d'água e a voz embargou pelo pranto, o fôlego se perdeu, falaram forte ao espírito. Saí de lá tentando racionalizar a dor e o sofrimento. Ainda não consegui. Não vou conseguir nunca. O afeto que nos constitui.


* as imagens incorporadas são de autoria do blog Vida sem paredes, a quem agradecemos o contato e cumprimentamos pelo ótimo trabalho.

sábado, 8 de abril de 2017

Há controvérsias

 A Revista Época publicou online agora em abril uma matéria com o seguinte título: 
Lei obriga os museus brasileiros a tomar mais cuidado com seu acervo [ver completa]

 (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)

Em tempo, queria dizer algumas coisas. Tornou-se um clichê que as matérias que abordam o patrimônio cultural recorrentemente partam de pautas calcadas na polêmica e na denúncia. É desagradavelmente irônico que se mencione o estatuto dos museus numa matéria assim, e nos 8 anos em que está em vigor não deva ter sido citado em matérias que abordassem seus efeitos positivos. Não quero varrer as falhas para debaixo do tapete, mas simplesmente analisar a forma como a grande imprensa cobre esses assuntos. Como formadores de opinião que são, esses veículos perdem sistematicamente a oportunidade de levar ao cidadão uma informação mais qualificada a respeito do trabalho que é feito pelas pessoas que atuam no Ibram, nas instituições museológicas e outros órgãos que atuam no campo do Patrimônio. Adoram também se autopromover lançando mão do que na verdade foi realizado justamente por aqueles que criticam. Vejamos:

 "Assim foram criadas relíquias como a forca que matou Tiradentes, a espada que Pedro I ergueu no Grito do Ipiranga, a farda usada por Marechal Deodoro na Proclamação da República, criações que a reportagem de ÉPOCA tenta desmistificar ao longo desta reportagem."
A forma como o texto é redigido dá a entender que a desmitificação dessas relíquias é fruto da reportagem, e não que é um trabalho feito há décadas por inúmeros pesquisadores, ao qual a reportagem está tendo acesso por entrevistas ou pesquisas (não quero generalizar aqui, mas repórter de hoje não faz pesquisa, liga pro pesquisador, pergunta o que quer saber, só escreve se gostou da resposta, nem sempre fala obrigado e muito menos cita quem lhe forneceu a informação). Há um tremendo equívoco na redação mesmo, pois basta ler a matéria para perceber que o questionamento sobre o objeto está sendo feito na própria instituição. Mas aqui sejamos francos. Os museus falham absurdamente em levar esse conhecimento, esse questionamento sobre seu acervo, as lacunas de documentação e inconsistências da aquisição para o público. Não conseguem muitas vezes ver que uma abordagem crítica desses artefatos e da forma como passaram a figurar em seu acervo e exposições seria formadora de uma forma que a reverência acrítica e acobertada por narrativas nebulosas jamais pode ser.
Outra coisa irritante é como adoram imputar tudo à instância pública, como se não houvessem várias instituições privadas que incorressem nessas mesmas falhas - e talvez a maioria delas, muitas vezes laudatórias porque foram criadas para exaltar pessoas, empresas, grupos sociais específicos que costumam ser seus patrocinadores.
Mas essas não são, nem de longe, as principais controvérsias a serem abordadas quando se trata dos museus brasileiros. Por mais que tente a matéria não consegue evitar o senso comum e uma visão meio fetichista, concentrada na suposta autenticidade que poderia ser apurada dos itens que elenca.Ora, sendo assim, se a espada fosse comprovadamente de D.Pedro I, por exemplo, a construção de uma interpretação sobre a Independência poderia continuar lançando mão da relíquia 'autenticada'? Mesmo picotadas pela impiedosa edição que comumente as redações aplicam às falas dos especialistas, podemos entrever nos trechos que restaram que o posicionamento dos profissionais é crítico e revela, ao contrário do que a matéria insinua desde a manchete, que não é ter ou não a lei que faz o museu reinterpretar seu acervo, e sim a atuação de pessoal capacitado e comprometido, especialmente se tiver boas condições de trabalho. O que a matéria apura, em relação a isso? 
A controvérsia mesmo, a meu ver, recai sobre o sentido social e político das instituições, no caso com o foco da matéria recaindo um pouco mais para os museus históricos, e, portanto, para as interpretações da História do Brasil que eles ajudam a produzir e difundir. Seria realmente querer demais que a revista conseguisse elucidar para o leitor a compreensão atual que historiadores, museólogos e demais profissionais envolvidos nesse trabalho desenvolveram sobre o que é o resultado das investigações em História e como a controvérsia e o embate de interpretações são constitutivas do que será a sua narração, e que, muito mais que autenticar o que quer que seja, o objetivo maior é auxiliar o público a desenvolver a capacidade de refletir sobre como e porque uma determinada versão do passado é produzida, como os artefatos compõem as tramas, e como o conhecimento da História é transformado por meio de incessantes contestações baseadas no estudo das evidências.