segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Queermuseu, exposição sob censura



Tomamos conhecimento ontem de um fato lamentável, o encerramento em resposta a pressões censoras de uma exposição de arte, abrigada no Santander Cultural, em Porto Alegre. 

Para situar minimamento quem está lendo, transcrevo a apresentação que consta da página oficial Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira:

"O Santander Cultural apresenta a mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira com mais de 270 obras – oriundas de coleções públicas e privadas – que percorrem o período histórico de meados do século 20 até os dias de hoje. Aberta ao público a partir de 15 de agosto, trata-se de uma iniciativa inédita que explora a diversidade de expressão de gênero e a diferença na arte e na cultura em períodos diversos. O Santander valoriza a diversidade e investe em sua unidade de cultura no Sul do País para que ela seja contemporânea, plural e criativa.

A exposição, que adota um modelo de disposição não cronológica e propõe desfazer hierarquias, mostra que a diversidade surge refletida no modelo artístico observada sob aspectos da variedade e da diferença. Pintura, gravura, fotografia, serigrafia, desenho, colagem, cerâmica, escultura e vídeo são apresentadas por meio de 85 artistas.
Este projeto é apoiado pelo Ministério da Cultura, patrocinado pelo Santander, realizado pelo Santander Cultural e Governo Federal e produzido pela Rainmaker Projetos e Produções."

Matéria do jornal do comércio:


A notícia circulou por vários portais de notícia e versões digitais de jornais. Para ler uma delas, aqui, contando a carta pública em que o banco se justifica e o posicionamento do curador Gaudêncio Fidelis. Destaco trechos mas sugiro fortemente a leitura completa do conteúdo da matéria.

Santander:
Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na Arte Brasileira. Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra. [...] Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.

Gaudêncio Fidelis:
Não fui consultado pelo Santander sobre o fechamento. Fiquei sabendo pelo Facebook. Logo em seguida, recebi uma rápida ligação da direção do museu, em que fui comunicado da decisão. Perguntaram se eu queria saber a opinião do banco sobre o assunto. Respondi que não precisava, uma vez que a nota divulgada já dizia tudo [...] As manifestações foram muito organizadas e se debruçaram sobre algumas obras muito específicas, que não dão a verdadeira dimensão da exposição. Esses grupos (de críticos) mostraram uma rapidez em distorcer o conteúdo, que não é ofensivo.

É preciso que o campo da museologia e todas as áreas afins levem o debate e defendam a importância da liberdade de expressão dentro e fora das instituições. O Santander foi covarde, se deixou intimidar por essa censura fascista. A resposta do banco foi covarde, antes de mais nada, porque não foi coerente nem com seu impulso original de apoiar a mostra. É fascismo inclusive tentar confundir os valores da democracia e de algum tipo de opinião censora mobilizada. Isso parte de movimentos da leva do MBL e reverbera na capitulação por parte do banco. Não se pode calar a divergência que propõe diálogo com intimidação. 

Diga-se de passagem, é mister deixar marcado que esse recuo é efeito direto da privatização de decisões políticas e de recursos materiais no campo da cultura. Dada a relevância de acervos e ações dessa área para discutir os rumos de nossa sociedade, vemos com grande reserva qualquer movimento que delega tais responsabilidades a empresas, que, diga-se de passagem, já lucram o suficiente para bancar ações sem ter que fazê-lo com recursos públicos, e contraditoriamente não demonstram ser dignas ou responsáveis quando se trata de geri-los, submetendo quaisquer critérios ao seu fim primeiro de realizar seu próprio interesse econômico.

Nosso posicionamento deve ressaltar a importância dos museus e das exposições para a construção de uma sociedade democrática e plural, o papel da arte para colocar no foro público as questões candentes de uma sociedade e a defesa da liberdade de expressão que se coloca num espaço do debate, sem qualquer apologia do ódio, da violência ou da censura de opinião.

Claro que a liberdade de expressão tem limite. É preciso considerar por exemplo se a manifestação em questão incita a violência, incita o ódio e o preconceito. A classificação etária é um recurso que por vezes se faz necessário, dentro do razoável. Uma crítica responsável quanto a isso poderia levar a ajustes devidos, realizados em conjunto pela instituição e curadoria. A informação e o trabalho técnico adequado devem ser o norte do trabalho nas instituições culturais, não a ignorância e a censura. Agora o questionamento, a problematização, são da natureza da arte. Se essas expressões se colocam para justamente questionar os preconceitos e violências isso é salutar. Varrer o conflito para debaixo do tapete não é solução. As obras estão no Museu e não no templo ou espaço sagrado de quem quer que seja. A blasfêmia não é um conceito laico, e sim baseada em dogmas religiosos. Logicamente quando se trata de arte as digressões em termos dos seus limites numa sociedade que se quer aberta e democrática serão longas e comportam várias formas de crítica e mesmo repúdio. Mas há que se fazê-lo tendo como princípio o estado laico. Se isso fosse feito no espaço cerimonial, ou sem que ficasse evidente um contexto - ora, ali é uma exposição de arte - seria de fato o caso de repudiar. A iconoclastia praticada no contexto sagrado de uma religião é sim um ato intolerante, desrespeitoso e violento. De toda e qualquer religião, e diga-se de passagem o MBL e quem o respalda nunca se pronunciou contra violências constantemente perpetradas nesta seara. Ali É uma exposição e ali é preciso que o público compreenda o sentido das obras naquele contexto. Ignorar isso desencadeia uma escalada de censura que nos levará a reprimir o papel social da arte. E do conhecimento. Imagine que eu vá a um museu histórico em que o "santo sudário" é exposto, acompanhado de todas as explicações científicas que revelam que ele foi confeccionado no século XIII... os cristão seriam ofendidos? A ciência ficaria interditada? Apesar de ser difícil compreender a extensão do termo estado laico na nossa atualidade, é justo aí que se faz presente. Há vezes em que o outro exacerba a intolerância justamente para calar o que não lhe agrada.  Nesse caso vale lembrar ainda que ninguém é obrigado a entrar no Museu ou espaço de exposição. Mas precisamos também praticar no mínimo a tolerância com o que não concordamos caso queiramos viver entre diferentes numa democracia. O limite da liberdade é esse. A exposição não tira a liberdade de ninguém escrever una crítica depois de ir lá vê-la. Ou a liberdade de preferir não ir. Ou a liberdade de fazer outra.

Sendo assim concluo que é de extrema importância repudiar o gesto censor do MBL e seus apoiadores, condenar a covardia do Santander e afirmar categoricamente os museus e exposições como espaços privilegiados da diferença, do debate, e da reconstrução de nossa combalida democracia.