quinta-feira, 27 de outubro de 2016

ComCiência no CCBB - uma apreciação

Acabei de voltar de uma visita ao CCBB-BH para conferir a exposição ComCiência, de Patricia Piccinini. O site da instituição tem uma apresentação bastante completa, da qual reproduzo apenas a apresentação geral e deixo o link aos leitores:

Para trazer a questão das mutações genéticas para o território da arte, a artista australiana Patricia Piccinini se utiliza do realismo como linguagem, apresentando ao espectador um universo de criaturas desconhecidas, porém palpáveis e surpreendentemente afetuosas. ComCiência, um neologismo que carrega sentido duplo, conectando consciente e ciência, propõe ao público um percurso narrativo entre esculturas, desenhos, fotografias e vídeos. Curadoria: Marcello Dantas.

Como sempre manda o figurino, antes de qualquer coisa fui à cata de material para não fazer uma apreciação fundada apenas nas minhas próprias impressões e reações. Achei desde matérias que são pouco mais que press releases mais recheados (G1) , chiliquinhos curtos e grossos de críticos que esperam que suas opiniões impactantes nos façam relevar a preguiça de uma análise mais atenta (Folha) e até um texto bastante generoso, até demais (JB). Quando se trata de arte contemporânea ou trabalhos que a margeam, fico com a sensação de que se o conceito for minimamente instigante, nem precisa de muito desenvolvimento ou coerência, pois há um batalhão de críticos e meios prontos a lhe conceder uma consistência que muitas vezes o próprio trabalho não apresenta. Sinto que é bem o caso, como pretendo mostrar mais adiante.
Bem, sem mais delongas, passemos ao assunto da postagem. O conceito e a proposta estética são, a meu ver, bastante óbvios. As criaturas do mundo imaginário de sua criadora seriam aparentemente surpreendentes e eventualmente repulsivos, mas no fundo são bastante familiares e capazes de despertar empatia. Fica fácil percebê-las como pertencentes ao conjunto de uma mesma obra e a esse suposto mundo intermediário entre o presente e o futuro. Nas palavras de Piccinini "O mundo que crio existe em algum lugar entre o que conhecemos e o que está quase sobre nós (a imaginação, ou o futuro).". Sim, mas de fato nesse sentido são homogêneas até demais, ou seja, podemos dizer que pertencem a um mesmo set de filmagem. Isso se reflete nas escolhas de formas, de cores e até mesmo dos certos bichos que servem de inspiração para os devaneios genéticos bastante limitados que apresentam. Uma das primeiras sensações que me causou foi justamente de enfado pela monotonia das cores das peles dos seres, quebrada aqui e ali numa ou noutra sala, exceções fazendo valer a regra. Diz a matéria do JB "O incômodo provocado por esses monstrengos de silicone concebidos por Patricia nos mostra sobre nossos próprios sentimentos, ampliando nossa compreensão sobre questões complexas e delicadas como a imposição de padrões de beleza, o racismo e a xenofobia". Será mesmo? Se a tônica é a da aceitação, sem qualquer sugestão do conflito entre as possibilidades de interação entre as criaturas e as invariáveis crianças - aliás, pasteurizadas numa suposta postura sem pré-conceitos. Falta humanidade às crianças.
As esculturas, destaque entre as diversas linguagens artísticas empregadas, em seu hiper-realismo "pseudo-mágico" - já que representam um universo imaginado, ainda que não propriamente imaginativo - não alcançam nem de longo a visão especulada nos melhores trabalhos da ficção científica. Pense aí por exemplo na visão de H.G. Wells em A ilha do Dr. Moreau, há mais de cem anos. Fábio Cypriano, na Folha, ao menos intuiu a falta de originalidade ao comparar as obras aos personagens hollywoodianos de E.T. e Guerra nas Estrelas da vida. Essa comparação é reforçada pela informação de que seu estúdio de Melbourne "(...) em muito se assemelha a um espaço de criação de efeitos especiais para o cinema, com seus ateliês de pele, unha ou cabelo" (JB, 24/04/2016). Aliás, por relatos que obtive da apresentação que a própria artista fez na casa quando da inauguração, há um trabalho em série industrializado e standartizado, emprego ad nausea dos mesmos materiais, em que qualquer apuro técnico fica diluído. O hiper-realismo aí, longe de dar asas à imaginação, a prende a um universo referencial já esgarçado,do cinema blockbuster e do videogame, eventualmente do desenho animado e dos quadrinhos - a própria artista parece, inadvertidamente, dar a pista da banalidade que cerca hoje temas como bioengenharia e tecnologia: "Somos cercados por modificações genéticas escondidas em nossos alimentos e animais, sem ao menos dar conta! Eu não induzo o visitante a pensar qualquer coisa sobre engenharia genética, mas pergunto como eles se sentem frente a essas possibilidades". Ora, me parece que ela não entendeu bem que isso está é naturalizado. Aquele filminho manjado de microrganismos se reproduzindo que o diga. Aliás, tratando-se de animais domésticos, plantas, já estamos brincando de deus há milênios. Assim, fica evidente essa retórica pós-moderna de que tenho enorme preguiça, em que o desconhecimento mínimo de história faz as pessoas se sentirem à vontade para apresentar como uma sacada surpreendente algo óbvio, ou fenômenos antiquíssimos como novidades ou, no mínimo, famigeradas "releituras". Parece estar aí parte da explicação para o grande sucesso da exposição entre jovens e crianças, parcelas do público acostumadas a consumir essa estética, que portanto lhes é completamente familiar e confortável. Os jovens também se divertem com as fixações anais, sexuais, corporais. Também pode estar nessa correspondência com a experiência de transformação de seus corpos a empatia com a exposição - de resto, com o tema da mutação, como já nos ensinou o mestre Stan Lee ao criar os X-Men, algumas décadas atrás. Aliás, num dos poucos pontos em que a monotonia é quebrada de fato, na sala que expõe as "máquinas orgânicas", mais uma vez é fácil reconhecer a remissão à cultura de massa, desde a proposta dos robôs emocionais de Guerra nas Estrelas, Carangos e Motocas (esse só quem tem de 40 pra cima saberá...) aos onipresentes Transformers. Não vejo problema em que se estabeleça diálogo com essa estética da cultura massificada, seja qual seu formato. A arte tem bebido nessa fonte faz tempo, mas os bons trabalhos são os que não se limitam a emulá-la. 
Falo por fim alguma coisa de expografia. Basicamente, me pareceu em primeiro lugar que o discurso do curador Marcelo Dantas não encontra ressonância no que nossos sentidos nos informam. “É como se você tivesse entrado nesse circo, nessa casa mal-assombrada”. Hein? Teria sido interessante brincar com o conceito dos Freak Shows, mostras itinerantes de aberrações que povoaram o imaginário de outras gerações num tempo em que o espanto não era fornecido em lata pelo cinema. Mas isso iria chocar-se frontalmente com o conceito de aceitação proposto na fala da autora. Não há horror algum, e sim uma empolgação que se reflete no comportamento do público, sempre soltando exclamações e interrogando alguém se já viu isso ou aquilo. Pra não falar das recorrentes fotos e selfies. O outro ponto que destaco, que me causou profundo incômodo, foram os textos de parede, da autora ou do curador, excessivamente descritivos e explicativos. Não deixam nenhum espaço à interpretação, mastigando demais. Passam do ponto. Isso vindo de mim, eterno crítico das paredes lacônicas, é de se notar. Nisso concordo com o Cypriano, ainda que deixe pra ele o tom bombástico. Acho que se tem que explicar tanto é porque a obra não tem tanta capacidade de comunicação. Pra muita coisa basta um título bem bolado, ou poucas frases. Nem sei se é populista, porque afinal sem dados não podemos saber quanto do público lê os textos. Parece que alguns foram substituídos ou melhorados desde as mostras anteriores em CCBBs de outras cidades.  Que o CCBB tem sido eficiente em apresentar exposições de atração de público em massa, estamos cansados de saber. O que falta é ir além dos números. Essa afluência de um público que não está acostumado a frequentar museus e centros culturais deve ser celebrada, mas não acriticamente. Nesse sentido seria salutar que as instituições promovessem pesquisas qualitativas de público para gerar um conhecimento relevante sobre a forma como são percebidas as exposições e se é pertinente ou não a suspeita de que as obras são "diminuídas" quando a proposta adere a essa perspectiva de consumo cultural.


sábado, 17 de setembro de 2016

A volta ao mundo em 80 museus - 1. Museu da História da Catalunha.

Finalmente, daquela forma inesperada que às vezes é a única, comecei hoje a coluna "A volta ao mundo em 80 museus", proposta antiga de recolher junto a diversos colaboradores material e comentários de viagens e visitas a museus pelo mundo.  

Há pouco realizamos, na disciplina Tipologia de Museus, um seminário sobre Museus Históricos, modernidade e nação, cujas leituras básicas foram as seguintes:

SANTOS, Myrian Sepulveda dos. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2006. 142 p.
SCHWARCZ, Lilia Moritz  e  DANTAS, Regina. O Museu do Imperador: quando colecionar é representar a nação. Rev. Inst. Estud. Bras. 2008, n.46 , p. 123-164.
BREFE, Ana Cláudia Fonseca. História nacional em São Paulo: o Museu Paulista em 1922. An. mus. paul.,  São Paulo ,  v. 10-11, n. 1, 2003, p. 79-103.  
L`ESTOILE, Benoît de. Museus nacionais como paradigma. In:  NACIONAL (BRASIL). Museus nacionais e os desafios do contemporâneo. Rio de Janeiro: Museu Historico Nacional, 2011. 295 p.
 

Caiu, portanto, como uma luva, o registro realizado pelo Flávio Marcus da Silva, um colega historiador muito prezado, dos tempos de graduação e mestrado. Escritor de mão cheia, apreciador da melhor literatura, e professor da FAPAM (Pará de Minas), daqueles que os alunos cobrem de merecidos elogios. Em sua passagem por Barcelona, visitou o Museu da História da Catalunha:


"Excelente passeio pela história de uma região singular, partindo do período romano (séculos III, IV e V), passando pelo domínio visigodo, pela época em que Barcelona e outras cidades da região eram governadas por condes independentes de qualquer autoridade superior (entre os séculos X e XV), pelos conflitos com a Coroa Espanhola nos séculos XVII e XVIII, até chegar à ditadura de Franco (e sua violenta perseguição aos catalães) e à atualidade. Fantástico!"









O texto de apresentação e as fotos são do próprio Flávio.

Deixo aqui meu agradecimento a ele pela contribuição, e considero que foi um ótimo começo para a coluna, que daqui pra frente deverá crescer a olhos vistos.

Faltam 79!

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Do livro em códice ao mundo digital: historiadores pensam as transformações da forma, da técnica e da cultura

Assisti hoje no SESC Palladium ao evento da série Literaturas: questões do nosso tempo, com Robert Darnton (EUA) e Roger Chartier (FR), mediado por Guiomar de Grammont. Historiadores de peso, das mais importantes referências para a história cultural e os estudos sobre livro, edição e leitura, ambos com vasta obra e carreiras coroadas de mérito, dispensando maiores apresentações. O formato da mesa me pareceu bastante interessante, um respiro ante o que estamos acostumados. Ao invés de falas razoavelmente longas seguidas de debate, algumas perguntas lançadas pela mediadora, que ambos responderam com concisão sem perder densidade, por vezes complementando e pontuando a fala do outro, embora de fato tenha sido a pergunta comum o principal modo de atar a conversa. E qualquer historiador sabe o valor de boas perguntas para estabelecer os rumos de uma reflexão histórica. As questões lançadas giraram em torno das mutações da cultura escrita no mundo ocidental: Devemos enfatizar as continuidades fundamentais ou as rupturas radicais, e qual o efeito de eventos como o nascimento do códex, a invenção da imprensa, as inovações nas práticas de leitura ou a alfabetização universal? Resistirá o livro, ante as inovações tecnológicas como o kindle, o e-book? A digitalização favorecerá a salvaguarda dos registros do conhecimento, ou seu modus operandi facilitará seu esquecimento num infindável e indiferenciado mar de bites? Qual o peso da intervenção da censura sobre a produção de um texto? O conhecimento histórico é útil para compreender mais acuradamente as transformações do nosso tempo? Pode o historiador ser objetivo? Qual a pertinência atual de conceitos de autoria, direitos autorais e propriedade intelectual? Quais as responsabilidades de pesquisadores, instituições e cidadãos ante esse quadro atual?

É digno de nota que Chartier tenha tomado antes a palavra para, em claro português com talvez algumas pitadas de portunhol, fazer, em seu nome e também no de Darnton, uma declaração contundente diante da grave situação política no Brasil. O público lançou um Fora, Temer, talvez de forma até bem tímida, o que considero preocupante se levarmos em conta que a maioria, sem muito medo de errar, era composta por estudantes universitários das áreas ligadas às Humanidades, Letras e Artes. Eu entre os que gritamos, logo a seguir nos deleitamos com uma linha de Chartier sobre motivos a temer que foi claramente seu modo de insinuar o próprio Fora, Temer.
Não tenho, nesse momento, como transcrever e aprimorar todas as notas que tomei durante as falas. Na medida do possível e do horário, espero trazer aqui uma síntese orientada pelas questões que são de recorrente pauta deste blog, aproveitando também um ou outro apontamento que me ocorra, considerando que hoje mesmo a aula da disciplina Memória, Sociedade e Informação que leciono na pós tratou justamente das interseções entre História, Literatura, Narrativa e Memória a partir da obra de Walter Benjamin, que aliás acabou sendo alvo de uma menção muito rápida numa fala de Darnton.
Tudo isso tem muito a ver com o modo como os historiadores interpretam a mudança, inclusive quando se trata de aspectos tecnológicos. Lembrando aqui a velha discussão entre apocalípticos e integrados proposta por Umberto Eco, a história nos dá perspectiva para ficar fora dessa dicotomia. Como assinalou Darnton, fala-se em era da informação mas toda "era" tem "informação", ainda que os suportes sejam outros. Da mesma forma quando falamos em tecnologia é preciso ir além do senso comum e compreender que historicamente as sociedades sempre transformam o mundo que habitam usando diversas tecnologias. Paralelamente, Chartier apontou que se o livro resiste e coexiste no atual cenário de digitalização profunda - inclusive das relações sociais - entre permanências e mudanças constatamos mortes quando certos objetos desaparecem - ou eu poderia acrescentar, são deslocados para outros espaços sociais, como as máquinas de escrever que vão para os acervos dos museus. Aqui pontuo que Benjamin, no verbete sobre o colecionador no trabalho das Passagens, já percebera a operação colecionadora que desligava o objeto de suas funções originais para inseri-lo em outra relação.
A posição crítica ante ante esse novo cenário, que cumpre ao pesquisador da História adotar mediante um trabalho rigoroso e as regras que definem um método a partir do qual ele (re)apresenta o passado no presente, representa um ganho na medida em que permite superar leituras esquemáticas, simplificadoras, em que é perdida a natureza mesma das mudanças e de seu complexo entrelaçamento. Chartier sistematizou muito bem uma análise tipológica das mutações em torno do texto, do livro e da leitura, separando as mudanças de ordem morfológica (que dizem respeito ao suporte do texto), tecnológica (recursos de edição e reprodução), e cultural (modos de leitura e circulação). Ao distinguir, nos modos de leitura, a mudança na relação entre fragmento e totalidade do texto, quando se passa da forma manuscrita ou impressa, em que a forma material impõe uma percepção tátil da totalidade à qual pertence qualquer trecho que lemos, para o formato digital em que o fragmento se autonomiza, talvez ele não estivesse muito longe das discussões propostas por Benjamin sobre declínio da experiência, perda da aura, ou mesmo entre a narração e a informação. São tópicos a serem desenvolvidos ainda. Também seria indispensável pensar aí proposições de estudiosos latino-americanos como García Canclini e Martín-Barbero, tão atentos aos gestos de descoleção e recoleção, às mediações dos meios e papel ativo dos ditos receptores. Chartier e Darnton, mesmo sem aprofundar, foram enfáticos em reconhecer a diferença da experiência histórica das gerações mais novas que já se formam como "nativos digitais" [alguns desses apontamentos nessa entrevista de Chartier ao jornal Hoje em dia]. Mesmo quando não mudam necessariamente os livros, mudam os leitores e as práticas de leitura. Nesse sentido, as últimas considerações de ambos me pareceram bastante inspiradoras para pensar as práticas no contexto próprio dos museus. Darnton concentrou sua fala na democratização da riqueza cultural e do conhecimento, alertando para os perigos da censura nos regimes autoritários e da comercialização desenfreada da sociedade de mercado. Chartier destacou o papel das políticas públicas na formação de um cidadão leitor e de um leitor cidadão - o que igualmente é válido para o cidadão público de museu - e condenou o equívoco de se estabelecer qualquer equivalência entre as diferentes formas de escrita, constatando sua convivência e possível complementariedade. Seria de bom alvitre que os profissionais do campo da Museologia incorporassem esse raciocínio para pensar a política de acervo e os programas de exposições das instituições, pois o que enseja é o entendimento que o digital e as manifestações da cultura material de épocas as mais diversas não são mutuamente excludentes ou se sucedem numa ordem cronológica e evolutiva, mas coexistem historicamente e cumpre ao museu prover inclusive as evidências que permitam compreender essa coexistência. 

sábado, 13 de agosto de 2016

Diversas musas: As estátuas também morrem (1953)

Encontrei esse documentário/ensaio enquanto pesquisava por um curta sobre o qual havia lido. Imediatamente percebi que era material de primeira, pela qualidade do trabalho de direção, fotografia, texto e pela temática. Certamente um precioso acréscimo para instigar as discussões sobre museus em geral e museus etnográficos em particular no âmbito da disciplina "Tipologia de Museus", este semestre na UFMG. Acrescentei alguns trechos de boas resenhas para contextualizar um pouco o material.


"Este raro documentário de Resnais e Marker é um ensaio critico sobre as relações entre a cultura ocidental e a africana. Não possui diálogos, apenas uma narração em off, sobre três fontes distintas, imagens de arquivo produzidas pelos filmes de propaganda colonial na África, imagens de arte africana realizadas pelos autores nos principais museus da Europa e imagens sobre o negro na diáspora. (...) O filme pode ser lido segundo nosso entender sobre dois modos principais: O primeiro seria a apreciação critica das imagens, ou seja, por se tratar de um ensaio sobre arte, o filme possibilita ao espectador uma discussão em torno da própria arte africana em seus diversos contextos. Por exemplo, na sociedade de origem e na vitrine do museu, da criação artística à fabricação industrial e etc. Também possibilita vislumbrar alguns trechos de filmes de propaganda do colonialismo, raríssimos hoje em dia por serem demasiadamente agressivos ao olhar contemporâneo. A segunda possibilidade seria a de discutir o texto da narração que é montado sobre as imagens, que possui ainda hoje uma extraordinária força critica e que viabiliza um olhar direto sobre o pensamento pan-africanista da década de cinqüenta no tocante ao colonialismo, o eurocentrismo, o racismo e o papel do afro-descendente na diáspora africana e na contra-cultura contemporânea."
Rafael Galante


"O filme As estátuas também morrem [Les statues meurent aussi], de Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cocquet é fruto da encomenda ao primeiro dos três cineastas, por parte da revista Présence Africaine, de um filme sobre a dita “arte negra”. A Présence Africaine, fundada, em Paris, em 1947, afirmou uma geração de novos escritores africanos, entre os quais Aimé Césaire e Léopold Senghor, que seriam autores decisivos da segunda metade do século XX. (...) Uma das ideias-mestras do filme a realizar era esta: o escândalo que é o simples facto da arte africana não estar, à época, representada no Museu do Louvre (onde as grandes tradições artísticas não-ocidentais foram incluídas), mas no Museu do Homem. Inicialmente intitulado “L’art nègre”, o projecto chamar-se-ia finalmente “Les statues meurent aussi” e resulta num documentário que, mais do que sobre a “arte negra”, reflecte sobre a museologização dos objectos extraídos a uma cultura onde não há museus e, por consequência, sobre as relações de poder – económico, político e simbólico – entre a cultura europeia e as culturas africanas, sob a organização colonial. (...) Em As estátuas também morrem, o ânimo da cultura africana é o rosto da morte do imperialismo europeu: donde, as imagens das estátuas neoclássicas, corroídas pela chuva e pelos ventos, no início do filme. Mas também da morte e de como o labor das formas inteligentes lhe faz frente. “O povo das estátuas é mortal” e, um dia, também elas se decompõem. Retenhamos o lamento cravado no coração da Europa do século XX e que este filme nos repete: “Um objecto está morto quando o olhar vivo que pousava sobre ele, desapareceu. E quando nós desaparecermos, os nosso objectos irão para onde nós enviamos os dos negros: para o museu.” João Sousa Cardoso
 



Ficha dos filme:
Título em português: As Estátuas Também Morrem
Título Original: Les Statues Meurent Aussi
Realização: Chris Marker e Alain Resnais
Ano: 1953
Argumento: Chris Marker
Fotografia: Ghislain Cloquet
Música: Guy Bernard
Voz: Jean Négroni
Género: documentário
Origem: França
Duração: 30 min
Cor: P/B

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Memória, Sociedade e Informação - DISCIPLINA OPTATIVA PPGCI

Este semestre, por um bom motivo, não vou ofertar optativa na graduação. Finalmente, depois de longo e tenebroso inverno, vou atuar novamente em Pós Graduação. O Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação da ECI/UFMG passa por intensa reformulação e passará a contar com linhas de pesquisa e disciplinas alinhadas com um projeto de investigação dos campos da Cultura, do Patrimônio, da Memória Social e da Museologia, com o qual estou comprometido. 
Eis aí a ementa da disciplina:

Partindo da distinção traçada por Aristóteles entre lembrança (mneme) e recordação (anamnesis), a disciplina propõe um estudo dos usos sociais da memória. Traça um panorama que considera as transformações históricas e as diferentes perspectivas conceituais adotadas por variadas correntes de pensamento, incluindo a memória social e os estudos de patrimônio, a tradição da mnemônica, as relações entre memória e narrativa, as relações entre memória e teoria crítica, e as recentes discussões sobre a chamada memória cultural. Esse aparato teórico embasará um debate sobre a memória e a informação na sociedade contemporânea, envolvendo as relações entre passado/presente e a comodificação da nostalgia; as políticas de patrimônio e de rememoração/esquecimento de experiências históricas traumáticas; o impacto das NTICs no contexto da sociedade do espetáculo e das redes sociais em meio digital; seja em contextos institucionais de bibliotecas, arquivos e museus ou em espaços não intitucionalizados que estejam envolvidos nas disputas públicas em torno da memória. 

 



Algumas das leituras são velhas conhecidas. Mas claro, ter a oportunidade de debater com maior densidade alguns clássicos e textos de referência é algo digno de comemorar. Além dos principais estudiosos brasileiros e das figuras consagradas com quem sempre podemos aprender, teremos ainda o que para muitos poderá ser novidade, como trabalhos de estudiosos latino-americanos e uma vasta bibliografia em inglês, perpassando especialmente os Estudos de Museu, antropologia, geografia cultural e trabalhos mais recentes sobre Memória. Uma pequena amostra:

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

BENJAMIN, Walter.  Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG / São Paulo: Imprensa Oficial, 2007.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3a ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
RICOEUR, Paul. A Memória, a Historia, o Esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007. 
SAMUEL, Raphael.  Theatres of Memory: Past and Present in Contemporary Culture v. 1. London: Verso, 1994.

Alguns destaques da 
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ANDERSON, Gail (Ed.). Reinventing the Museum: historical and contemporary perspectives on the paradigm shift. Walnut Creek: Altamira Press, 2004.  
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, 453p.
BARRETT, Jennifer. Museums and the Public Sphere. Wiley-Blackwell, 2012.
DICKINSON, Greg; BLAIR, Carole; OTT, Brian L. (eds.). Places of Public Memory: The Rhetoric of Museums and Memorials. University Alabama Press, 2010.
ERLL, Astrid. Memory in Culture. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011.
HOOPER-GREENHILL, E. Museums and the shaping of knowledge. London: Routledge, 1992.
HUYSSEN, Andreas . Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Standford: Stanford University Press, 2003.
HERZFELD, Michael. A place in History. Princeton: Princeton University Press , 1991.
KARP, Ivan.; LAVINE, Steven, ROCKEFELLER FOUNDATION. Exhibiting cultures: the poetics and politics of museum display. Washington: Smithsonian Institution Press, 1991.
KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Destination Culture: Tourism, Museums, and Heritage. California: University of California Press; First Printing edition, 1998.
LOWENTHAL, David. The Past is a Foreign Country Cambridge and. New York: Cambridge University Press, 1985.
PEARCE, Susan M. On collecting: an investigation into collecting in the European tradition. London: Routledge, 1995.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. SP: Editora Companhia das Letras, 2003.
SALGADO, Mireya. Museos y patrimonio: fracturando la estabilidad y la clausura. Íconos-Revista de Ciencias Sociales, n. 20, p. 73-81, 2013.
SARLO, Beatriz. Tiempo presente. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003.
SPENCE, J. D. O palácio da memória de Matteo Ricci. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
SIMINE, Silke ARNOLD-de.Mediating Memory in the Museum: Trauma, Empathy, Nostalgia. Palgrave Macmillan, 2013.
VIDAL-NAQUET. Pierre. Os Assassinos da Memória. Campinas: Papirus, 1988.
YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.


Como de costume, são abertas vagas para estudantes que queiram fazê-la como isolada. A princípio posso oferecer 3 vagas, e sugiro que quem se interessar procure se informar o quanto antes. Vai ser uma concorrência apertada.

Contatos da Secretaria da Pós:
Fone: (31) 3409-5207 (Seção de ensino) - (31) 3409-6103 (Colegiado)
e-mail: ppgci@eci.ufmg.br