Acabei de voltar de uma visita ao CCBB-BH para conferir a exposição ComCiência, de Patricia Piccinini. O site da instituição tem uma apresentação bastante completa, da qual reproduzo apenas a apresentação geral e deixo o link aos leitores:
Para trazer a questão das mutações genéticas para o território da arte, a
artista australiana Patricia Piccinini se utiliza do realismo como
linguagem, apresentando ao espectador um universo de criaturas
desconhecidas, porém palpáveis e surpreendentemente afetuosas.
ComCiência, um neologismo que carrega sentido duplo, conectando
consciente e ciência, propõe ao público um percurso narrativo entre
esculturas, desenhos, fotografias e vídeos. Curadoria: Marcello Dantas.
Como sempre manda o figurino, antes de qualquer coisa fui à cata de material para não fazer uma apreciação fundada apenas nas minhas próprias impressões e reações. Achei desde matérias que são pouco mais que press releases mais recheados (G1) , chiliquinhos curtos e grossos de críticos que esperam que suas opiniões impactantes nos façam relevar a preguiça de uma análise mais atenta (Folha) e até um texto bastante generoso, até demais (JB). Quando se trata de arte contemporânea ou trabalhos que a margeam, fico com a sensação de que se o conceito for minimamente instigante, nem precisa de muito desenvolvimento ou coerência, pois há um batalhão de críticos e meios prontos a lhe conceder uma consistência que muitas vezes o próprio trabalho não apresenta. Sinto que é bem o caso, como pretendo mostrar mais adiante.
Bem, sem mais delongas, passemos ao assunto da postagem. O conceito e a proposta estética são, a meu ver, bastante óbvios. As criaturas do mundo imaginário de sua criadora seriam aparentemente surpreendentes e eventualmente repulsivos, mas no fundo são bastante familiares e capazes de despertar empatia. Fica fácil percebê-las como pertencentes ao conjunto de uma mesma obra e a esse suposto mundo intermediário entre o presente e o futuro. Nas palavras de Piccinini "O mundo que crio existe em algum lugar entre o que conhecemos e o que está quase sobre nós (a imaginação, ou o futuro).". Sim, mas de fato nesse sentido são homogêneas até demais, ou seja, podemos dizer que pertencem a um mesmo set de filmagem. Isso se reflete nas escolhas de formas, de cores e até mesmo dos certos bichos que servem de inspiração para os devaneios genéticos bastante limitados que apresentam. Uma das primeiras sensações que me causou foi justamente de enfado pela monotonia das cores das peles dos seres, quebrada aqui e ali numa ou noutra sala, exceções fazendo valer a regra. Diz a matéria do JB "O incômodo provocado por esses monstrengos de silicone concebidos por
Patricia nos mostra sobre nossos próprios sentimentos, ampliando nossa
compreensão sobre questões complexas e delicadas como a imposição de
padrões de beleza, o racismo e a xenofobia". Será mesmo? Se a tônica é a da aceitação, sem qualquer sugestão do conflito entre as possibilidades de interação entre as criaturas e as invariáveis crianças - aliás, pasteurizadas numa suposta postura sem pré-conceitos. Falta humanidade às crianças.
As esculturas, destaque entre as diversas linguagens artísticas empregadas, em seu hiper-realismo "pseudo-mágico" - já que representam um universo imaginado, ainda que não propriamente imaginativo - não alcançam nem de longo a visão especulada nos melhores trabalhos da ficção científica. Pense aí por exemplo na visão de H.G. Wells em A ilha do Dr. Moreau, há mais de cem anos. Fábio Cypriano, na Folha, ao menos intuiu a falta de originalidade ao comparar as obras aos personagens hollywoodianos de E.T. e Guerra nas Estrelas da vida. Essa comparação é reforçada pela informação de que seu estúdio de Melbourne "(...) em muito se assemelha a um espaço de
criação de efeitos especiais para o cinema, com seus ateliês de pele,
unha ou cabelo" (JB, 24/04/2016). Aliás, por relatos que obtive da apresentação que a própria artista fez na casa quando da inauguração, há um trabalho em série industrializado e standartizado, emprego ad nausea dos mesmos materiais, em que qualquer apuro técnico fica diluído. O hiper-realismo aí, longe de dar asas à imaginação, a prende a um universo referencial já esgarçado,do cinema blockbuster e do videogame, eventualmente do desenho animado e dos quadrinhos - a própria artista parece, inadvertidamente, dar a pista da banalidade que cerca hoje temas como bioengenharia e tecnologia: "Somos cercados por modificações genéticas escondidas em nossos alimentos
e animais, sem ao menos dar conta! Eu não induzo o visitante a pensar
qualquer coisa sobre engenharia genética, mas pergunto como eles se
sentem frente a essas possibilidades". Ora, me parece que ela não entendeu bem que isso está é naturalizado. Aquele filminho manjado de microrganismos se reproduzindo que o diga. Aliás, tratando-se de animais domésticos, plantas, já estamos brincando de deus há milênios. Assim, fica evidente essa retórica pós-moderna de que tenho enorme preguiça, em que o desconhecimento mínimo de história faz as pessoas se sentirem à vontade para apresentar como uma sacada surpreendente algo óbvio, ou fenômenos antiquíssimos como novidades ou, no mínimo, famigeradas "releituras". Parece estar aí parte da explicação para o grande sucesso da exposição entre jovens e crianças, parcelas do público acostumadas a consumir essa estética, que portanto lhes é completamente familiar e confortável. Os jovens também se divertem com as fixações anais, sexuais, corporais. Também pode estar nessa correspondência com a experiência de transformação de seus corpos a empatia com a exposição - de resto, com o tema da mutação, como já nos ensinou o mestre Stan Lee ao criar os X-Men, algumas décadas atrás. Aliás, num dos poucos pontos em que a monotonia é quebrada de fato, na sala que expõe as "máquinas orgânicas", mais uma vez é fácil reconhecer a remissão à cultura de massa, desde a proposta dos robôs emocionais de Guerra nas Estrelas, Carangos e Motocas (esse só quem tem de 40 pra cima saberá...) aos onipresentes Transformers. Não vejo problema em que se estabeleça diálogo com essa estética da cultura massificada, seja qual seu formato. A arte tem bebido nessa fonte faz tempo, mas os bons trabalhos são os que não se limitam a emulá-la.
Falo por fim alguma coisa de expografia. Basicamente, me pareceu em primeiro lugar que o discurso do curador Marcelo Dantas não encontra ressonância no que nossos sentidos nos informam. “É como se você tivesse entrado nesse circo, nessa casa mal-assombrada”. Hein? Teria sido interessante brincar com o conceito dos Freak Shows, mostras itinerantes de aberrações que povoaram o imaginário de outras gerações num tempo em que o espanto não era fornecido em lata pelo cinema. Mas isso iria chocar-se frontalmente com o conceito de aceitação proposto na fala da autora. Não há horror algum, e sim uma empolgação que se reflete no comportamento do público, sempre soltando exclamações e interrogando alguém se já viu isso ou aquilo. Pra não falar das recorrentes fotos e selfies. O outro ponto que destaco, que me causou profundo incômodo, foram os textos de parede, da autora ou do curador, excessivamente descritivos e explicativos. Não deixam nenhum espaço à interpretação, mastigando demais. Passam do ponto. Isso vindo de mim, eterno crítico das paredes lacônicas, é de se notar. Nisso concordo com o Cypriano, ainda que deixe pra ele o tom bombástico. Acho que se tem que explicar tanto é porque a obra não tem tanta capacidade de comunicação. Pra muita coisa basta um título bem bolado, ou poucas frases. Nem sei se é populista, porque afinal sem dados não podemos saber quanto do público lê os textos. Parece que alguns foram substituídos ou melhorados desde as mostras anteriores em CCBBs de outras cidades. Que o CCBB tem sido eficiente em apresentar exposições de atração de público em massa, estamos cansados de saber. O que falta é ir além dos números. Essa afluência de um público que não está acostumado a frequentar museus e centros culturais deve ser celebrada, mas não acriticamente. Nesse sentido seria salutar que as instituições promovessem pesquisas qualitativas de público para gerar um conhecimento relevante sobre a forma como são percebidas as exposições e se é pertinente ou não a suspeita de que as obras são "diminuídas" quando a proposta adere a essa perspectiva de consumo cultural.