terça-feira, 23 de agosto de 2016

Do livro em códice ao mundo digital: historiadores pensam as transformações da forma, da técnica e da cultura

Assisti hoje no SESC Palladium ao evento da série Literaturas: questões do nosso tempo, com Robert Darnton (EUA) e Roger Chartier (FR), mediado por Guiomar de Grammont. Historiadores de peso, das mais importantes referências para a história cultural e os estudos sobre livro, edição e leitura, ambos com vasta obra e carreiras coroadas de mérito, dispensando maiores apresentações. O formato da mesa me pareceu bastante interessante, um respiro ante o que estamos acostumados. Ao invés de falas razoavelmente longas seguidas de debate, algumas perguntas lançadas pela mediadora, que ambos responderam com concisão sem perder densidade, por vezes complementando e pontuando a fala do outro, embora de fato tenha sido a pergunta comum o principal modo de atar a conversa. E qualquer historiador sabe o valor de boas perguntas para estabelecer os rumos de uma reflexão histórica. As questões lançadas giraram em torno das mutações da cultura escrita no mundo ocidental: Devemos enfatizar as continuidades fundamentais ou as rupturas radicais, e qual o efeito de eventos como o nascimento do códex, a invenção da imprensa, as inovações nas práticas de leitura ou a alfabetização universal? Resistirá o livro, ante as inovações tecnológicas como o kindle, o e-book? A digitalização favorecerá a salvaguarda dos registros do conhecimento, ou seu modus operandi facilitará seu esquecimento num infindável e indiferenciado mar de bites? Qual o peso da intervenção da censura sobre a produção de um texto? O conhecimento histórico é útil para compreender mais acuradamente as transformações do nosso tempo? Pode o historiador ser objetivo? Qual a pertinência atual de conceitos de autoria, direitos autorais e propriedade intelectual? Quais as responsabilidades de pesquisadores, instituições e cidadãos ante esse quadro atual?

É digno de nota que Chartier tenha tomado antes a palavra para, em claro português com talvez algumas pitadas de portunhol, fazer, em seu nome e também no de Darnton, uma declaração contundente diante da grave situação política no Brasil. O público lançou um Fora, Temer, talvez de forma até bem tímida, o que considero preocupante se levarmos em conta que a maioria, sem muito medo de errar, era composta por estudantes universitários das áreas ligadas às Humanidades, Letras e Artes. Eu entre os que gritamos, logo a seguir nos deleitamos com uma linha de Chartier sobre motivos a temer que foi claramente seu modo de insinuar o próprio Fora, Temer.
Não tenho, nesse momento, como transcrever e aprimorar todas as notas que tomei durante as falas. Na medida do possível e do horário, espero trazer aqui uma síntese orientada pelas questões que são de recorrente pauta deste blog, aproveitando também um ou outro apontamento que me ocorra, considerando que hoje mesmo a aula da disciplina Memória, Sociedade e Informação que leciono na pós tratou justamente das interseções entre História, Literatura, Narrativa e Memória a partir da obra de Walter Benjamin, que aliás acabou sendo alvo de uma menção muito rápida numa fala de Darnton.
Tudo isso tem muito a ver com o modo como os historiadores interpretam a mudança, inclusive quando se trata de aspectos tecnológicos. Lembrando aqui a velha discussão entre apocalípticos e integrados proposta por Umberto Eco, a história nos dá perspectiva para ficar fora dessa dicotomia. Como assinalou Darnton, fala-se em era da informação mas toda "era" tem "informação", ainda que os suportes sejam outros. Da mesma forma quando falamos em tecnologia é preciso ir além do senso comum e compreender que historicamente as sociedades sempre transformam o mundo que habitam usando diversas tecnologias. Paralelamente, Chartier apontou que se o livro resiste e coexiste no atual cenário de digitalização profunda - inclusive das relações sociais - entre permanências e mudanças constatamos mortes quando certos objetos desaparecem - ou eu poderia acrescentar, são deslocados para outros espaços sociais, como as máquinas de escrever que vão para os acervos dos museus. Aqui pontuo que Benjamin, no verbete sobre o colecionador no trabalho das Passagens, já percebera a operação colecionadora que desligava o objeto de suas funções originais para inseri-lo em outra relação.
A posição crítica ante ante esse novo cenário, que cumpre ao pesquisador da História adotar mediante um trabalho rigoroso e as regras que definem um método a partir do qual ele (re)apresenta o passado no presente, representa um ganho na medida em que permite superar leituras esquemáticas, simplificadoras, em que é perdida a natureza mesma das mudanças e de seu complexo entrelaçamento. Chartier sistematizou muito bem uma análise tipológica das mutações em torno do texto, do livro e da leitura, separando as mudanças de ordem morfológica (que dizem respeito ao suporte do texto), tecnológica (recursos de edição e reprodução), e cultural (modos de leitura e circulação). Ao distinguir, nos modos de leitura, a mudança na relação entre fragmento e totalidade do texto, quando se passa da forma manuscrita ou impressa, em que a forma material impõe uma percepção tátil da totalidade à qual pertence qualquer trecho que lemos, para o formato digital em que o fragmento se autonomiza, talvez ele não estivesse muito longe das discussões propostas por Benjamin sobre declínio da experiência, perda da aura, ou mesmo entre a narração e a informação. São tópicos a serem desenvolvidos ainda. Também seria indispensável pensar aí proposições de estudiosos latino-americanos como García Canclini e Martín-Barbero, tão atentos aos gestos de descoleção e recoleção, às mediações dos meios e papel ativo dos ditos receptores. Chartier e Darnton, mesmo sem aprofundar, foram enfáticos em reconhecer a diferença da experiência histórica das gerações mais novas que já se formam como "nativos digitais" [alguns desses apontamentos nessa entrevista de Chartier ao jornal Hoje em dia]. Mesmo quando não mudam necessariamente os livros, mudam os leitores e as práticas de leitura. Nesse sentido, as últimas considerações de ambos me pareceram bastante inspiradoras para pensar as práticas no contexto próprio dos museus. Darnton concentrou sua fala na democratização da riqueza cultural e do conhecimento, alertando para os perigos da censura nos regimes autoritários e da comercialização desenfreada da sociedade de mercado. Chartier destacou o papel das políticas públicas na formação de um cidadão leitor e de um leitor cidadão - o que igualmente é válido para o cidadão público de museu - e condenou o equívoco de se estabelecer qualquer equivalência entre as diferentes formas de escrita, constatando sua convivência e possível complementariedade. Seria de bom alvitre que os profissionais do campo da Museologia incorporassem esse raciocínio para pensar a política de acervo e os programas de exposições das instituições, pois o que enseja é o entendimento que o digital e as manifestações da cultura material de épocas as mais diversas não são mutuamente excludentes ou se sucedem numa ordem cronológica e evolutiva, mas coexistem historicamente e cumpre ao museu prover inclusive as evidências que permitam compreender essa coexistência. 

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