quarta-feira, 28 de junho de 2023

OBJETOS AFETIVOS COMO FONTE HISTÓRICA E A CULTURA MATERIAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG

ESCOLA DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO - ECI

CURSO DE GRADUAÇÃO EM MUSEOLOGIA

DISCIPLINA: METODOLOGIA DA PESQUISA HISTÓRICA EM MUSEUS

PROFESSOR: LUIZ HENRIQUE GARCIA

GRUPO: ADRIANA LAGE BORGES SOUZA, ALÉXIA THIMÓTEO DOMINGUES MATOS, ANSELMO REZENDE GUSMÃO, GABRIELLA MARIA DE ASSIS PEREIRA, NANA FERNANDES ALBUQUERQUE, NARA SANTANA DA SILVA.


“Pela sua própria materialidade, os objetos perpassam contextos culturais diversos e sucessivos, sofrendo reinserções que alteram sua biografia e fazem deles uma rica fonte de informação sobre a dinâmica da sociedade.” (REDE, 1996, p. 276).


INTRODUÇÃO

Partindo da proposta da exposição curricular “Incipit Vita Nova”, de 2023, da 11ª turma de alunos do curso de Museologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o presente trabalho buscou dedicar-se à temática da cultura material e dos objetos de afeto que estudantes que vêm de outras cidades para estudar na UFMG trazem para sua “nova morada” e, dessa forma, tentar traçar um paralelo entre os objetos de afeto e a memória a que eles remetem, bem como sua importância na construção da História Contemporânea. Nesse sentido, entendemos que os objetos, para além de sua função de uso e sua existência material, possuem também a face simbólica e subjetiva da afetividade, que se estabelece a partir da sua interação com o indivíduo. Assim, objetos do cotidiano, como pulseiras, travesseiros e fotografias, podem carregar um caráter sentimental e até mesmo biográfico (NERY, 2017), ajudando a traçar parte da história do indivíduo de quem o objeto um dia pertenceu.


PROCESSO INVESTIGATIVO

Com base nesta proposição, algumas questões foram trazidas, tais como: O que significa o início de uma nova vida para os estudantes que vêm de outras cidades ao ingressarem na UFMG? Como essa vida nova se inicia? O que essa cultura material diz sobre esses estudantes e a sociedade da qual fazem parte? Como esses objetos afetivos se tornam documentos para a historiografia? A nossa pesquisa procurou compreender essas questões e as relações que os objetos de afeto desempenham na construção da memória afetiva dos estudantes que vieram de outras cidades, estados ou países, para iniciar a vida acadêmica na UFMG, em Belo Horizonte. Sendo assim, iniciamos fichamentos de bibliografias para o embasamento teórico no estudo dos objetos afetivos como fonte de cultura material, sua relação com a memória afetiva individual e coletiva, no cenário contemporâneo. Após o levantamento bibliográfico e das hipóteses, o passo seguinte foi realizado em campo, utilizando de entrevistas semiestruturadas, realizadas com estudantes de diversos cursos da UFMG


PESQUISA DE CAMPO - OBJETO DE AFETO

Primeiramente, buscamos utilizar o formulário desenvolvido no Google Forms relacionado com a proposta temática da exposição curricular de Museologia de 2023, Incipit Vita Nova, enviado virtualmente aos estudantes, onde uma das perguntas era sobre os objetos de afeto que eles trouxeram de sua cidade natal para BH. No entanto, essa etapa não foi produtiva, uma vez que obtivemos poucos elementos materiais para sustentar nossa pesquisa. Após algumas reuniões entre os membros do grupo e nosso orientador, percebeu-se a necessidade de prover um trabalho de pesquisa em campo, sobre as relações de vínculos das pessoas com suas origens através dos objetos afetivos. Decidimos sair em três duplas pelo campus da UFMG, para melhor abrangência do espaço e dinâmica das entrevistas.
Roteiro utilizado nas pesquisas, p.1
Roteiro utilizado nas pesquisas, p.2

Conseguimos obter seis bons depoimentos, com suporte material para continuarmos a pesquisa e elementos para a exposição curricular. Buscamos reconhecer nas respostas dos entrevistados a base teórica que foi pesquisada pelo grupo, como, por exemplo, o indivíduo se utiliza do objeto afetivo “longe de ser uma mera fabricação do sujeito, o objeto faz parte da subjetividade" (RAMOS, 2020, p.9). As características físicas do objeto em questão, figuram em segundo plano e não passam mais a ter a mesma impotência ou significado principal para aquela pessoa. Dentro desse contexto de pesquisa, percebemos que esses novos atributos incorporados ou até mesmo perdidos, relativos ao objeto de afeto, carregam histórias que mostram traços comportamentais, de forma isolada ou no âmbito social, do indivíduo que influencia a cultura material. Assim,

"Os bens que conservamos durante décadas podem ser considerados espelhos de nossas experiências da passagem do tempo [...] lembranças de família e as histórias e possíveis estórias que trazem valores intangíveis para objetos, valores repassados de uma geração à outra.” (MOURÃO; OLIVEIRA, 2018, pg.3).


PARTES DE ALGUMAS ENTREVISTAS

“Meu nome é Maria Eduarda. Faço o 6º período de história na UFMG. Vim de Ilicínea, no sul de Minas, perto da cidade de Varginha. Eu trouxe de efetivo fotos reveladas com a minha afilhada. Aí eu trouxe e preguei na parede do meu quarto.[...] Eu acho que, eu não sei se acontece a mesma coisa com as outras pessoas que se mudaram assim, mas eu acho que essas lembranças elas me fazem lembrar que eu tenho um canto, sabe? Porque eu tenho um lugar que é meu. Que eu tenho uma base minha, uma base que fica um pouquinho longe, mas que eu tenho um lugar, então quando eu volta pra Ilicínea, isso me remete, sabe? É quando eu vejo as fotos, é isso me remete a essa questão de ter um lugar. Eu acho que morar longe é aceitar que você vai perder coisas igual perder momentos, perder é situações. Você vê fotos da sua família fazendo reuniões? Perder o Dia das Mães do lado da mãe. Perder vários momentos assim, formatura da escolinha [...].”
Imagem cedida por Maria Eduarda. Acervo pessoal.

Imagem cedida por Maria Eduarda. Acervo pessoal.




“Meu nome é Davi, sou de Brasília, tenho 20 anos, faço curso de Direito. Tô morando na casa de parentes em BH. Um objeto específico não, […] mas um cobertor pelo fato de minha mãe ter me dado que eu usei a vida inteira, é um cobertor de afeto.”

“Meu nome é Ludyelle. Eu sou de Sete Lagoas, tenho 24 anos. Eu curso Letras e estou no 10º período. A única coisa que eu trouxe, eu acho que é um pouco que me trazia a casa assim foi um cobertor que eu trouxe. Isso aí, quando eu dormia, eu me sentia em casa. Minha mãe me deu o cobertor. Até hoje. Uma relíquia. Ele representava lembrança de casa […]”
 
Ludyelle e sua mãe enroladas no cobertor. Acervo pessoal.

“Meu nome é Gabriel, sou do 9º período do curso de Bacharelado de Violino e vim de Contagem. [...] Eu tenho uma pulseira, que tipo, foi no período que eu estava lá na minha cidade, no período que eu estava ligado à minha igreja, na minha cidade natal. Foi um período em que eu estava muito conectado com minha família, com a comunidade e com a igreja.”

Pulseira do Gabriel. Acervo pessoal.

Maraísa, estudante do 8° período de História, da cidade de Oliveira (MG) - “[...] é o meu computador. É uma coisa muito boba, mas é porque ele foi a primeira coisa [...] que eu comprei com meu salário. É a coisa que eu mais guardo, sabe? Eu tenho uma coisinha afetiva com ele [...] porque, apesar de tudo, ele é o que eu levei [...] depois usei para estudar para o Enem, o que eu levei para Divinópolis e o que eu trouxe pra cá. [...] ele tem um valor sentimental, foi a primeira coisa que eu consegui comprar com o meu salário [...]”.
Computador da Maraísa. Acervo pessoal.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da proposta investigativa, sobre a importância do objeto como fonte documental e, ainda, sobre relação entre o sujeito e o objeto, foi possível conceber, ao longo dessa pesquisa, considerações que confirmam ponto inicial da pesquisa, o de uma atuação do objeto que ultrapassa sua existência meramente material e adquire uma face subjetiva de afetividade, pois “[...] a materialidade é um atributo inerente, mas que, porém, não esgota o objeto culturalmente considerado [...]” (REDE, 1996, p.274).

Durante a realização do trabalho de campo, foi possível aprofundar nossa compreensão de como a pesquisa empírica contribui para reconhecer o objeto afetivo e suas relações com a memória pessoal, coletiva e a cultura material contemporânea. Nesse sentido, foi possível observar que todos os alunos entrevistados demonstraram grande apreço pelos itens, independente de seu valor material, sendo as memórias que estes remeteram o que era mais significativo. Por fim, diante do predomínio da relação do sujeito com o objeto, bem como o significado dessas relações para suas memórias e histórias, é possível reiterar que os objetos, como fonte de informação histórica, são fundamentais para a análise das relações, de características e comportamentos, tanto individuais quanto de grupos.

REFERÊNCIAS

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4504474/mod_resource/content/1/BOSI%2C%20E.%20Mem%C3%B3ria%20e%20sociedade.%20Introdu%C3%A7%C3%A3o.pdf Acesso em 17 de maio de 2023.

FERREIRA, JUNIOR, 2020, Patrimônio cultural no Brasil. Disponível em: https://diversitas.fflch.usp.br/files/patriminio%20cultural%20no%20brasil.pdf . Acesso em 17 de maio de 2023.

FUNARI, Pedro Paulo de Abreu. Memória Histórica e Cultura Material. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, nº25/26, p. 13-31, 1993.

MOURÃO, Nadja Maria, OLIVEIRA, Célia Carneiro. Design social: objetos biográficos do cotidiano, memória social. In.:Chapon. Linguagens do Design: comunicação, cultura e arte. Edição v. 1 n. 1 21-11-2018 . pg 02-15.

NERY, Olivia Silva. Objeto, memória e afeto: uma reflexão. Universidade Federal de Pelotas. Doutoranda em História pela PUCRS, bolsista CAPES. Revista Memória em Rede, Pelotas, v.10, n.17, Jul./Dez.2017 – ISSN- 2177-4129. Periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria. http://dx.doi.org/10.15210/rmr.v8i14.7485.

RAMOS, Francisco Régis Lopes. Em nome do objeto: museu, memória e ensino de história. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2020.

REDE, Marcelo. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material. In.: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.265-82 jan./dez. 1996. Disponível em: https://www.scielo.br/j/anaismp/a/JNDbcs773QLQfh84cPBRyjH/?lang=pt&format=pdf . Acesso em 27 abr 2023.

XAVIER, Érica S. Ensino e História: O uso das fontes históricas como ferramentas na produção de conhecimento histórico. In: Revista Antíteses, vol.3. pag. 1097-1112. 2010. Disponível em: https://docplayer.com.br/68559304-Ensino-e-historia-o-uso-das-fontes-historicas-como-ferramentas-na-producao-de-conhecimento-historico.html. Acesso em 25 abr 2023.

Museu dos Brinquedos: A história da representação de pessoas pretas a partir de bonecas industrializadas

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

METODOLOGIA DA PESQUISA HISTÓRICA EM MUSEUS

PROFESSOR: Luiz Henrique Assis Garcia

ALUNAS: Esther Pereira Inácio, Jéssica de Freitas Rabelo Amorim, Maria Beatriz de Moraes Silva, Maria Elisa Pereira Aguiar


A temática

É correto afirmar que, dentro do fazer histórico, o documento é um elemento importante para a compreensão acerca dos ideais, valores e comportamentos dos indivíduos pertencentes a uma sociedade. Neste sentido, é perceptível que os documentos históricos são elementos que “não focalizam os acontecimentos particulares por si sós, mas pelo que revelam sobre a cultura em que ocorreram” (BURKE, 1992). Com isso, o documento é capaz de revelar características sociais e culturais de uma sociedade, além de possibilitar a criação de narrativas que não possuem como foco somente o passado, como também a atualidade.

A partir disso, a temática escolhida utiliza como recorte um documento histórico presente no cotidiano de muitas pessoas, utilizado por diversas gerações: a boneca. Utilizando como recorte as bonecas industrializadas, a pesquisa realizada possui como objetivo analisar as relações entre as bonecas industrializadas e a representação de pessoas pretas por meio dessas bonecas. Desse modo, busca-se analisar, através de um recorte de raça, a relação entre essas bonecas, a representação de pessoas pretas por meio dessas bonecas ao decorrer da história e as narrativas que podem ser criadas através delas. Para isso, a instituição utilizada como base para a produção da pesquisa foi o Museu dos Brinquedos, localizado na Avenida Afonso Pena, no centro de Belo Horizonte.


A representação de pessoas pretas na indústria dentro da história do Brasil

Cechin e Da Silva (2012) explicam como, num contexto totalmente diferente, a boneca Barbie pode ser utilizada como um exemplo de documento ao passo que é a boneca mais famosa do mundo e possui características caucasianas e ‘descendência’ alemã. Ou seja, através dela, valores de supremacia são repassados para crianças desde a infância não só contribuindo com a manutenção de um status quo dominante mas também perpetuando-o e ensinando, além de incorporar objetos como roupas, acessórios, utensílios, artefatos de cultura para torná-la mais próxima de marcas da realidade e criar um molde de consumo não só em torno das bonecas, mas do que elas usavam e na difusão de tais marcas. Em outras palavras, a pressão midiática e de publicidade difundindo valores sociais conservadores. As imagens de feminilidade que a boneca Barbie demonstra e problematizam as narrativas e discursos reproduzidos através da mesma. Ademais, ela sustenta o argumento de universalidade feminina como se houvesse apenas uma referência e modelo específico. Elas explicam que “[a]rticular educação inclusiva e a diversidade no cotidiano escolar é um desafio, pois pressupõe a compreensão da alteridade. Para isso, é necessário desfazer as tramas da exclusão e abrir espaço para as múltiplas formas de ser sujeito dentro de uma cultura e um tempo histórico”. (CECHIN, DA SILVA, 2012, p. 624).

Os primeiros registros e objetos que se tem sobre a produção de bonecas pretas no Brasil com propósito explícito de representação de pessoas negras são as bonecas Abayomis, recriadas nos anos 80 pela artesã e socioeducadora Lena Martins, sendo uma reprodução das bonecas que eram feitas para crianças escravizadas em meio a diáspora negra no Brasil. Essas bonecas são feitas de pequenas tiras de pano que são amarradas para formar cabeça e membros de um corpo humano. As mães faziam bonecas com pedaços de suas roupas, sendo simples de fabricar e pequenas o suficiente para esconder dos escravagistas. A partir da análise realizadas sobre essas bonecas, é possível afirmar que, ainda que não fossem produtos industrializados, esses itens funcionavam como um instrumento de resistência para as comunidades africanas escravizadas. Dentro dessa perspectiva, as bonecas Abayomi revelam aspectos voltados a um recorte racial a respeito do documento histórico, mostrando que a boneca possui funções que não se limitam ao brincar.

Colocando essas bonecas dentro da perspectiva dos brinquedos industrializados do século XX, é possível citar como exemplo, a partir das imagens do Blog de Ana Caldatto, algumas bonecas dos anos 60 como a “ neguinha” da coleção Sapequinha da fábrica “ Estrela”. Dentro dessa conjuntura, deve ser considerada também a forma como os estereótipos são colocados na boneca, tanto fisicamente quanto em seus adornos e nome, fato que prova que mesmo com a comercialização das bonecas, a promoção e o reforço de clichês que contribuem para o racismo. Além disso, é possível citar as bonecas Susi negras, dos anos 70, com estilo mais fashionista e despojado. A partir dos anos 80, 90, há uma mescla na comercialização de bonecas pretas da Barbie e Susi transitando entre a moda praiana e referências a tendências de estilo da época. Hodiernamente, apesar da baixa produção de bonecas pretas, há uma maior variedade de estilos, como a boneca Nenequinha Clássica, lançada no início dos anos 2000, além do lançamento da Mattel de 2020 da boneca negra candidata a presidência.


Catálogo da Boneca Sapeca. Fonte: Arquivo pessoal de Ana Caldatto

Com o passar dos anos, a temática têm sido disseminada de forma ampla, ganhando espaço em variados contextos. Neste sentido, Oliveira e Amorim (2020) discorrem em seu artigo “Bonecas negras na formação de identidades positivas das crianças na educação infantil”, apresentado no VII CONEDU, em 2020, sobre como a introdução de outros formatos de boneca impactam positivamente no desenvolvimento e construção de um universo diverso e inclusivo. Dessa forma, é necessário reconhecer a potência de bonecas diversificadas e atividades lúdicas utilizando-as são importantes para sentimento de inclusão, acolhimento e representatividade de um grupo marginalizado por gênero, cor de pele e estrutura econômica, já que o Brasil vem de uma tradição escravocrata. Ao verificar a importância da brincadeira, foi percebido por Cechin e Da Silva (2012) como os dispositivos utilizados na brincadeira são importantes para o desenvolvimento de habilidades sociais como incentivo para as crianças refletirem e falarem sobre si mesmas. Dessa forma, a pesquisa aponta para a importância do empoderamento desse grupo social em vulnerabilidade há seculos devido ao passado escravagista do Brasil e fortalecimento de movimentos como o feminismo negro mediante narrativas e a existência de bonecas diversificadas.

Várias bonecas pretas. Fonte: Arquivo pessoal de Ana Caldatto


O Museu dos Brinquedos e a representatividade de pessoas pretas

Aberto em 2006, o Museu dos Brinquedos foi inaugurado com a missão de promover a preservação e a valorização da infância no Brasil. Com uma coleção particular de brinquedos, construída pela mineira Luiza Meyer, conhecida como Vovó Luiza, o museu possui como maior foco o público infantil, sendo um local aberto a muitas famílias. Além da possibilidade de visualização da exposição, o museu conta com ações educativas que propõem a interação com o lúdico e com o ato de brincar, sendo possível interagir com algumas peças do acervo. Dessa forma, o acervo do museu conta com mais de 5.000 brinquedos dentro de seu acervo, estando cerca de 800 expostos para a observação do público. Dentre os itens, há uma coleção de Barbies, idealizada e cedida ao museu pelos colecionadores Marcelo Ferraz e Marta Alencar. Dentro da coleção, é possível ver uma grande variedade de bonecas, nas quais é possível encontrar bonecas de diferentes etnias, raças, vestimentas, tipos de corpo e gêneros, sendo uma coleção que chama a atenção pela diversidade de modelos entre as bonecas.

Fotografias da coleção de Barbies no Museu dos Brinquedos. Fotografia: Maria Elisa Pereira Aguiar.




Considerações finais

A partir das pesquisas feitas em relação à fabricação de bonecas pretas, bem como seus impactos sociais na questão da representatividade direcionada ao público alvo, percebe-se primeiramente as mudanças tanto físicas quanto ao seu estereótipo no passar das décadas. Neste sentido, é possível utilizar como exemplo as imagens do blog de Ana Caldatto “ Coleção Bonecas Negras Black Dolls”, onde há mudanças consideráveis nas bonecas dos anos 60, tendo como exemplo a boneca “ Neguinha”, fabricada e comercializada pela empresa “ Estrela”. Além desse modelo, é possível citar as bonecas Susi com tons de pele mais variados nos anos 70, além de variações de bonecas no estilo “ bebê”, fabricadas nos anos 2000 e das barbies, também fabricadas no início do mesmo ano, com estilo praiano e fashionista. o que corrobora com a citação de Burke, sobre a conexão entre os documentos e acontecimentos históricos. Há também os impactos sociais quando se reflete a temática da representatividade para com as minorias, onde indivíduos negros, ao se enxergar nas bonecas, também se enxergam nos espaços sociais como pessoas. Além de firmarem suas identidades como seres pertencentes a sua cultura, outros também o enxergam como seres humanos, tendo outras percepções acerca das múltiplas raças presentes. Existem consequências positivas em relação ao feminismo negro, que se alinham na questão da visibilidade como uma arma para reconhecimento e inserção de seus corpos de forma humanizada ( sem a hipersexualização, como podemos ver no lançamento da mattel em relação a boca candidata, ) e conquistando espaços de poder. Por fim, o Museu dos Brinquedos também expõe bonecas pretas, não somente com o intuito de preservar objetos da infância, mas também de expor tais bonecas com a intenção de promover a diversidade e a percepção do outro no que tange a questões raciais.

Referências bibliográficas


BURKE, Peter (org.). A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa In: A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992, p.327-348.


PORTAL (Belo Horizonte). Museu: Museu dos Brinquedos. In: Museu dos Brinquedos . [S. l.]. Disponível em: http://portalbelohorizonte.com.br/o-que-fazer/arte-e-cultura/museu-dos-brinquedos. Acesso em: 20 jun. 2023.


PORTAL (Belo Horizonte). Museu: Museu dos Brinquedos. In: Museu dos Brinquedos . [S. l.]. Disponível em: http://portalbelohorizonte.com.br/eventos/encontro/infantil/ferias-no-museu-dos-brinquedos. Acesso em: 20 jun. 2023.


SILVA , Maria Clara. Mulher Negra Hoje. In: SILVA , Maria Clara. Preta Pretinha: A história por trás da primeira loja de bonecas negras no Brasil. [S. l.]: Mundo Negro, 24 jul. 2020. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/preta-pretinha-a-historia-por-tras-da-primeira-loja-de-bonecas-negras-do-brasil/#:~:text=Bonecas%20sem%20estere%C3%B3tipo%20que%20representassem,Pretinha%20Bonecas%20surgiu%20em%202000. Acesso em: 20 jun. 2023.


REIS, A. OFICINA DE BONECAS ABAYOMI - RELATO DE EXPERIÊNCIA DE ACADÊMICAS DA ÁREA DE SAÚDE. Revista Corixo de Extensão Universitária, Cuiabá, MT, v. 8, n. VIII, 2022. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/corixo/article/view/12193. Acesso em: 31/05/2023.

OLIVEIRA, Ednalva Rodrigues De. Bonecas negras na formação de identidades positivas das crianças na educação infantil. VII CONEDU - Conedu em Casa... Campina Grande: Realize Editora, 2021. Disponível em: https://mail.editorarealize.com.br/artigo/visualizar/81372. Acesso em: 31/05/2023

A Criminalização da Capoeira na Primeira Metade do Século XIX

Universidade Federal de Minas Gerais - Escola de Ciências da Informação Graduação em Museologia


Disciplina: Metodologia da Pesquisa Histórica em Museus

Prof. Dr.: Luiz Henrique Garcia

Alunos: Ana Beatriz Fóscolo, Kelvin Martins, Lucas Thiago, Vitor de Souza


INTRODUÇÃO

A fim de tecer comentários que suscite em um debate sobre a criminalização da capoeira na primeira metade do século XIX, é essencial definirmos o conceito de capoeira neste período. A capoeira, tal como a conhecemos hoje, reconhecida como esporte e tradição nacional, com grupos organizados, cada qual com sua metodologia de treinamento e sistemas de graduação, é uma construção moderna que teve início na década de 30. Nesse período, houve um esforço estatal liderado pelo então presidente da República, Getúlio Vargas, para construir uma identidade nacional através do esporte. A capoeira passou por várias transformações identitárias ao longo de seu processo de organização e continua a evoluir até os dias atuais. É crucial compreender o contexto sociopolítico da época, que favoreceu essas transformações. Estudos mostram que, embora a comunidade da capoeira possa ser definida como um universo simbólico com relativa autonomia, houve influência do espírito político presente nas ideologias autoritárias do período de 1930 a 1945.(CUNHA, I. M. C. F. da; VIEIRA, L. R.; TAVARES, L. C. V.; SAMPAIO, T. M. V, 2014)

Desta forma, na primeira metade do século XIX, não se falava em "A" capoeira, mas sim em "O" capoeira ou capoeiragem, que era compreendida mais como uma característica de quem a praticava. Para uma melhor compreensão, podemos analisar trechos de jornais da época. Por exemplo, um anúncio que relatava a fuga de um escravizado no Jornal Diário do Rio de Janeiro de 1824: “[...] fugio hum muleque, de nome José, Nação Angolla [...]tinha sahido do Callabouço de apanhar 200 açoutes [...] elle, anda mesmo na Cidade, he muito capoeira.”

Outro trecho menciona a fuga de um escravizado da nação Cambinda, chamados João: “Fugio [...] estatura ordinária, reforçado: cara alegre, nariz afilado, tem os pés grossos, com dedos esparrados, era trabalhador de carroça, e muito dezordeiro, e capoeira[...]”

Um terceiro trecho denunciava a impunidade de crimes cometidos por capoeiras: “Negros capoeira que costumão exercer o seu bárabro valor [...] tem comettido varias desordens e assassinios [...]. É preciso que a Policia tenha mais alguma actividade, para prevenir semelhantes desgraças; em apalpar pretos, de quem se desconfia”

A partir desses três relatos, podemos inferir que a capoeira era associada a desordeiros, malandros, espertalhões e pessoas de grande força e destreza física. Para tal afirmação, observermos as recomendações racistas no último trecho destacado: "apalpando negros em quem se desconfia", isto é, aqueles que possuíam características de capoeira, vista sua prática como um crime por si só e que se estendeu até o meio do século XX. Uma ‘vadiagem a ser controlada’ por ser uma prática exclusivamente negra e escrava. A organicidade dos escravizados se aglomerarem

pelas ruas das vilas durante a noite ou em um encontro dos escravos de ganho pelas ruas durante o dia, erguiam olhares suspeitos pelo povo e, sobretudo, pela vigilância.

Como construção deste contexto, de acordo com AMORIM (2019),houveram determinações e decretos no Brasil que permitiam a aplicação de castigos corporais em praças públicas aos negros capoeiras. Via-se, naquela época, a prática da mesma como uma ameaça ou mera prática de vadiagem dos escravos, por vezes associando-os a atos criminosos ou de dissidência. Com esse efeito, em 1822, durante o governo de Dom Pedro I, decretou-se o castigo em açoites aos cativos que praticassem capoeiragem. Foram eliminadas as punições por açoites aos negros capoeiristas após a abolição da escravidão, mas persistiu-se ao fim do Século XIX, penas de “prisão cellular dous a seis mezes” em Minas Gerais, mas tais penas poderiam variar de província à província. A criminalização, no entanto, persistira até o meio do Século XX com as leis ‘anti-vadiagem’ iniciando-se no governo de Floriano Peixoto.

ANÁLISE DE IMAGENS: SIGNOS E SIGNIFICADOS DA CAPOEIRA

Negros Lutando. Brasils. Augustus Earle, Aquarela, 1822, 16.5 x 25.1 cm. Fonte:National Library of Austrália

Essa é uma gravura do viajante inglês, Augustus Reale, que se encontra na Austrália, intitulada “Negro lutando nos Brasis”. Há homens dois negros, o da direita está em posição de ataque, enquanto o outro parece se defender. É interessante observar que aquele que está atacando carrega uma bacia de latão modelada na mão direita,, dando indícios que se tratava de um escravo barbeiro-cirurgião visto que a bacia era utilizada aos fins de corte de barba e cabelo e extração de dentes Os cirurgiões-barbeiros eram normalmente encontrados nas ruas das cidades ou pelos cais de navios nas cidades costeiras. À esquerda, o guarda real de polícia chegando para impedir a capoeiragem. Antes da década de 1830, a capoeira não era considerada um crime, mas havia perseguição aos negros que se expressavam culturalmente em locais públicos (AMORIM, 2019).

É importante perceber que os donos de escravos permitiam e até estimulavam os escravos a serem capoeiras, visto ser um mecanismo de autodefesa eficiente para a época em casos de tentativas de asfaltos ou confiscos pelos guardas. Como exemplo, o Rio de Janeiro era perigoso na época, e a polícia interferia muito no espaço urbano, desenvolvendo uma disputa entre o poder senhorial (particular) e o poder do estado; o estado não aceitava a capoeira, mas só em 1850 é que realmente o estado consegue impor de fato a sua autoridade sobre ela.

BRIGGS, Frederico Guilherme. Negros que vão levar açoutes. Rio de Janeiro, RJ: Riviere e Briggs, entre 1832-36. 


Em comparação, essa segunda gravura retrata dois soldados da guarda imperial de polícia durante o período do Brasil Império. Leva-se dois escravos a serem açoitados pelo crime discriminado na placa em que carregam em seus ombros. Há uma referência sobre esse tipo de prática no Jornal O Espelho Diamantino de 1828 (RJ), alguém diz expressando revolta sobre a impunidade dos capoeiras: “Que alegrão para o povo, quando se vir [...] levando na testa o letreiro de [...] capoeira.” De acordo com (LÍBANO, 2020) eles seriam açoitados com 300 chibatadas no calabouço do morro do castelo.

Refletindo sobre o contexto histórico da mesma, o Rio de Janeiro era um verdadeiro labirinto de nações, onde se encontravam africanos vindos de diversas partes do continente. Até hoje, podemos encontrar no Rio de Janeiro um bairro chamado Pequena África, que era conhecido como Bairro do Valongo, sendo neste bairro que desembarcaram cerca de um milhão de africanos entre o final do século XVIII e o início do século XIX (GOMES, 2019). Apesar de enfrentarem uma pena severa de 300 chibatadas observemos que mesmo com uma punição tão brutal, a capoeira continuou a se desenvolver e crescer ao longo dos anos, tornando-se assim até os dias de hoje, uma prática de resistência, movimento de contracultura e de identidade racial.

Jogar Capoeira. Autoria: Rugendas. Fonte: Viagem Pitoresca através do Brasil- Litografia de Villeneuve, fig. Wattier. 4/18. (1835).

Em consonância a tais comparações, essa terceira imagem produzida pelo pintor Rugendas é conhecida como "Dança Capoeira", famosa por ilustrar diversos livros didáticos. Reconhecemos a importância desta imagem pela trajetória de Rugendas, o qual registrou a capoeira tanto no Rio de Janeiro quanto na Bahia, principais centros onde a capoeira se desenvolveu. A prática nasceu como uma atividade urbana praticada pelos escravos urbanos e no Rio de Janeiro é reconhecido como um dos principais centros difusores da capoeira.

Nesta ilustração, há dois indivíduos envolvidos em uma disputa. Em uma região de trânsito, podemos observar um africano usando o chapéu de um oficial, tocando um tambor. No Museu Histórico Nacional, há tambores semelhantes apreendidos em operações policiais que obedeciam ordens contra a lei de vadiagem, que nada mais era contra qualquer manifestação de cultura negra, assim como acontecia com as rodas de samba. Mais acima na imagem, alguém segura uma lança e sua presença indica que estamos no limite entre a brincadeira e a luta, clima que é presente nas rodas de capoeira contemporâneas. Atualmente, nas rodas de capoeira, há o chamado ‘jogo duro’, que é quando um dos oponentes resolve sair da brincadeira e partir para luta, forçando seu adversário a fazer o mesmo.

Na esquerda, vemos outro grupo batendo palmas e instigando os jogadores. Há dois grupos e um deles também portando facas. Essa tradição foi narrada por Câmara Cascudo, onde os capoeiras do Rio de Janeiro precisavam superar desafios para adquirir a posse da navalha e o uso do chapéu, como um rito de passagem para ascender na hierarquia das maltas. (MAO, 2023)

No alpendre da casa grande, dois brancos observam a capoeira. Nesse momento, a capoeira representada não era uma luta real, mas sim uma versão estilizada, um jogo. A capoeira tinha a

capacidade de se transformar facilmente adaptando-se de luta para brincadeira. Já nessa época a luta era bastante desenvolvida. Os africanos tentavam convencer a polícia de que não deveriam ser presos já que a capoeira não era uma luta real, mas sim uma brincadeira. Essa noção é conhecida na Bahia como vadiação. (LÍBANO, 2020). Há ainda hoje nas músicas de capoeira, um toque de berimbau chamado de “Cavalaria” em que nos relatos dos mestres de capoeira, utilizava

se como forma de alertar os capoeiras sobre a chegada da polícia. A ideia de que há códigos nas rodas de capoeira que só podem ser percebidos por quem a vive é notável ainda atualmente.

Durante o projeto estatal de criação de uma imagem nacional no Brasil citado anteriormente, assim como na década de 70 durante a pior fase da ditadura -, houve um período em que a capoeira vivenciou um crescimento significativo. Neste contexto surgiram grupos como o Muzenza, o Cordão de Ouro e posteriormente, o grupo Abadá, que desempenharam um papel fundamental na disseminação dessa arte pelo mundo conquistando a presença em mais de 100 países, contando com cerca de 90 mil alunos pelo mundo. Os regimes autoritários utilizaram a capoeira como símbolo para promover seus projetos nacionalistas, mas procuraram esvaziá-la de suas raízes africanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criminalização da capoeira na primeira metade do século XIX revela uma complexa história marcada pela discriminação racial e pelo controle social exercido pelas autoridades. No entanto, mesmo diante dessas repressões, a capoeira continuou a se desenvolver e crescer ao longo dos anos e se transformou em uma prática cultural com características próprias. Atravessando por transformações identitárias e resistindo às tentativas de esvaziamento de suas raízes africanas, ainda desenvolve-se um esforço de resgate da ancestralidade e da essência cultural da capoeira, buscando reconhecê-la como patrimônio. Contudo, desafios ainda devem ser superados em um Brasil que ainda perpetua o racismo através de diversos mecanismos do Estado: intervenções policiais e supressão de manifestações periféricas como vemos rotineiramente nos noticiários, seja por matérias que mostram esta realidade ou pelo típico sensacionalismo que mostra essas repressões como espetáculos contra a criminalidade, como notas-e facilmente em periódicos da primeira metade do século XIX. E mesmo que existam estes problemas, a Capoeira felizmente, rompe barreiras mostrando-se como uma atividade respeitada culturalmente.

REFERÊNCIAS

CUNHA, I. M. C. F. da; VIEIRA, L. R.; TAVARES, L. C. V.; SAMPAIO, T. M. V. Capoeira: a memória social construída por meio do corpo. Porto Alegre: [s.n.], 2014

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 11 maio 2023..

A AURORA FLUMINENSE Jornal Político e Litterario. Rio de Janeiro, 1829. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 11 maio 2023.

AMORIM, Thiago Rodrigues. Registros Pictóricos: Refletindo sobre a Capoeira na Primeira Metade do Século XIX. Revista do Colóquio, N. 16, junho de 2019.

SOARES, Carlos Eugenio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2ªedição – Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2004

EARLE, Augustus. Negros Lutando. Brasils, 1822, National Library of Austrália. Disponível em: https://nla.gov.au/nla.obj-134509842/view. Acesso em: 11 maio 2023.

BRIGGS, Frederico Guilherme. Negros que vão levar açoutes. Rio de Janeiro,1832-36. Disponível em: https://acervobndigital.bn.gov.br/sophia/index.html. Acesso de 11 Maio de 2023.

MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS. Ofícios Ambulantes Barbeiro-Dentista [Painel informativo], 2023. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

RUGENDAS. Viagem Pitoresca através do Brasil: Jogar Capoeira. - Litografia, 1835. Disponível em: http://dami.museuimperial.museus.gov.br/handle/acervo/9665. Acesso em: 11 maio 2023.

MOVIMENTO INOVAÇÃO NA EDUCAÇÃO. Escola Abadá Capoeira. Disponível em: https://movinovacaonaeducacao.org.br/iniciativas-inovadoras/escola-abada-capoeira/. Acesso em: 15 maio 2023

GRUPO MUZENZA. Capoeira History. Disponível em: https://capoeirahistory.com/pt br/geral/grupo-muzenza/. Acesso em: 15 maio 2023.

terça-feira, 27 de junho de 2023

A oralidade como reafirmação da cultura de povos originários no mundo acadêmico

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


ECI - Escola de Ciência da Informação

DISCIPLINA: Metodologia em pesquisa histórica em museus

PROFESSOR: Luiz Henrique Assis Garcia

ESTUDANTES: Alinne Damasceno; Juliane Martins; Kézia Amaral; Lígia Dutra; Lucas Souza e Marina Ramos.



“Sem memória não há história. E sem história não há referência. Por isso é tão importante a memória de nossos antigos e antigas, por isso é tão importante a oralidade pelo próprio poder que ela carrega em transmitir as nossas raízes e as nossas referências.”


A oralidade é uma das metodologias de pesquisa histórica, onde o relato oral é a fonte e a pessoa é o arquivo vivo. Para muitos povos originários, a oralidade é uma das principais ferramentas de comunicação e preservação da história das suas culturas. Com o processo de inserção de pessoas indígenas no meio acadêmico, é perceptível a existência de duas práticas, a oralidade e a escrita. Onde a primeira é um dos principais pilares da cultura dos povos indígenas e a segunda é habitualmente valorizada no âmbito acadêmico. Dessa forma, se faz necessário compreender como essas duas fontes de pesquisa se interagem e coexistem no âmbito da Universidade Federal de Minas Gerais.

As principais fontes de registros que guardam vestígios de manifestações da oralidade humana como as entrevistas, gravações de vídeo ou musicais se constituem como um documento oral. As entrevistas foram utilizadas como materialização da oralidade debatida nesta pesquisa. Foram entrevistados Guigui Pataxó da Aldeia Mãe Barra Velha do extremo sul da Bahia, estudante de odontologia pela UFMG; Txawã Pataxó, bacharel em Ciências Biológicas pela UFMG, atua como apoiador técnico de saneamento ambiental na Secretaria Especial de Saúde Indígena; Adana Omágua Kambeba, do povo Kambeba, formada em Medicina pela UFMG e multiartista e Pablo Lima, professor da Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) da Faculdade de Educação (FAE-UFMG).

De acordo com o indígena Guigui Pataxó, a oralidade dentro do meio acadêmico é importante porque diversos grupos da sociedade poderão ter acesso ao outro lado da história, que é diferente da versão oficial abordada por anos nos livros didáticos utilizados nas escolas. Ao mesmo tempo que é necessário se ter cuidado com o que é mostrado sobre os povos indígenas, segundo Guigui, alguns saberes devem ser resguardados dentro da comunidade indígena. O graduando em Odontologia defende que a cultura está em tudo que fazemos, é quando estamos em comunidade com nosso povo e conhecemos a nossa história, é sentar e ouvir um ancião.

Érika Guesse (2011) defende que a escrita foi usada como um instrumento de poder dos colonizadores para criar suas articulações quanto a dominação do território, os recursos da escrita junto a descaracterização da oralidade como fonte legítima foi o que contribuiu para a colonização do território.

Com a colonização os povos originários, foram sentindo novas necessidades quanto a passagem de suas histórias e seus testemunhos, aderindo à escrita como uma ferramenta contemporânea de reafirmação da sua cultura e seu povo.

A oralidade é uma herança, e é uma das principais condições para interação dos povos, através dela compartilhamos saberes, costumes e tradições. Na universidade, a oralidade é uma das principais ferramentas para a discussão e por conseguinte a formação de conhecimento. Pode-se dizer que a oralidade é uma fonte histórica rica a ser valorizada e destacada, principalmente no que diz respeito aos povos originários e seus meios de inserção na sociedade.


Referências

BARBOSA, J. M. A.; MEZACASA, R.; FAGUNDES, M. G. B. A oralidade como fonte para a escrita das Histórias Indígenas. Tellus, [S. l.], v. 18, n. 37, p. p. 121–145, 2018. DOI: 10.20435/tellus.v18i37.558. Disponível em: https://www.tellus.ucdb.br/tellus/article/view/558. Acesso em: 31 mar. 2023.

FÉLIX, R. Da voz à letra: oralidade, ancestralidade e resistência. In: Volta miúda: quilombo, memória e emancipação [online]. Ilhéus, BA: Editus, 2020, pp. 147-162.

GUESSE, Érika B. Vozes da floresta: a oralidade que (re)vive na escrita literária indígena. Boitatá, [S. l.], v. 6, n. 12, p. 104–121, 2011. DOI: 10.5433/boitata.2011v6.e31196. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/article/view/31196. Acesso em: 31 mar. 2023.


Outras referências

Página do Professor Pablo Lima no Somos UFMG: Professor » Pablo Luiz de Oliveira Lima » Faculdade de Educação » Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino » Somos UFMG

Participação de Adana Omágua Kambeba no Programa Rolê nas Gerais: Danielle Soprano Adana Omágua Kambeba no Instagram: “Programa: Rolê nas Gerais- Globo (10.06.23) Agradeço aos jornalistas Zu Moreira, Renata do Carmo e a toda a equipe da Globo, por mostrar…”



segunda-feira, 19 de junho de 2023

Oralidade como fonte Histórica na Idade Contemporânea: A Resistência dos Quilombos


Universidade Federal de Minas Gerais
Escola da Ciência e da Informação
Disciplina: Metodologia de Pesquisa Histórica em Museus
Professor: Luiz Henrique Garcia
Aluno(a): Ana Carolina Gomes Fiuza, Bia Pimentel, Jéssica de Almeida Silva, Laura Braga Melo, Thais de Souza Costa.


Dentro das disciplinas das humanidades, como História, Antropologia e Ciências Sociais, a história oral enfrenta o desafio de obter legitimidade e respaldo científico. A institucionalização da história oral é necessária para que seja reconhecida como um método válido de pesquisa, mas até que ponto essa institucionalização pode deslegitimar os povos que historicamente têm sido marginalizados e excluídos da narrativa histórica convencional?

A pesquisa histórica requer rigor técnico e metodológico para garantir a qualidade e a confiabilidade dos dados coletados. No entanto, a história oral busca valorizar as vozes e as experiências dos grupos sociais que foram historicamente silenciados e negligenciados pela história oficial, além de permitir resgatar trajetórias e memórias que foram suprimidas ou ignoradas pela narrativa dominante.

O recorte que trazemos nos elucida bastante sobre isso, os Quilombos foram comunidades formadas por descendentes de escravizados africanos que resistiram ao sistema de escravidão no Brasil entre os séculos XVI e XIX, com cerca de cinco milhões de escravizados desembarcados do continente africano, os Quilombos surgiram como uma forma de resistência e preservação da cultura e identidade negra. O termo "Quilombos" era utilizado em alguns locais do continente africano para designar acampamentos fortificados e militarizados mas, no Brasil, eles se configuraram como grupos étnico-raciais, autoatribuídos, que resistiram ao processo de escravidão. Somente a Constituição Federal de 1988 garantiu os direitos sobre a propriedade das terras dos Quilombos, consagrando suas diversas existências e importância na sociedade brasileira.

As comunidades quilombolas são reconhecidas e protegidas pela legislação brasileira, especialmente pelo Decreto nº 4887/03, que estabelece critérios para o reconhecimento e titulação das terras ocupadas por essas comunidades. Esse reconhecimento garante o direito à propriedade e à preservação da identidade cultural quilombola. Essas comunidades têm uma

história de resistência à escravidão e à opressão histórica sofrida pelos povos africanos e afrodescendentes no Brasil.

Então, pensando a partir da identidade quilombola, ela vai além de características étnicas, sendo construída a partir da vivência e da experiência dos indivíduos, onde a autodefinição como quilombola pode ser influenciada por intervenções de órgãos governamentais e não governamentais (SOUZA, 2007). A persistência cultural dessas comunidades é mantida principalmente pela tradição oral, transmitida de geração em geração, onde a oralidade primária desempenha um papel fundamental na gestão da memória social, preservando a história, os conhecimentos e as tradições quilombolas e trazendo novamente o nosso campo de pesquisa. A história oral permitiu que essas comunidades ganhassem visibilidade e reconhecimento em âmbito nacional e internacional, resultando em algumas conquistas de direitos e seu registro na história do Brasil.

É importante refletir sobre a prática da história oral e garantir que as vozes das comunidades quilombolas sejam representadas de forma autêntica e respeitosa. A história oral deve ser uma ferramenta de empoderamento e autodeterminação, permitindo que as próprias comunidades tenham controle sobre suas narrativas e contribuam para a compreensão coletiva do passado.

Nas comunidades quilombolas em Minas Gerais, há uma riqueza de histórias compartilhadas por meio de versos, conversas e tradições transmitidas de geração em geração. Aprender habilidades artesanais, como a trança de milho e a confecção de cestas, é uma prática comum nessas comunidades, assim como a utilização de tecnologias sociais para o aproveitamento de água da chuva e técnicas de plantio no semiárido.




Foto: Peça de Algodão no Tear - Artesã Natalina Soares de Souza - Associação de Produtores e Artesãos
de Rosa Grande - Berilo – Crédito foto: Lori Figueiró do Livro "À luz do algodão".


A religiosidade também desempenha um papel importante nessas comunidades, com cada uma celebrando seu santo padroeiro em momentos diferentes ao longo do ano. As festas tradicionais são marcadas por quitandas doces e salgadas servidas com café, acompanhadas de ritmos musicais característicos. Essas comunidades quilombolas em Minas Gerais representam uma parte significativa do patrimônio cultural e histórico do estado, sendo essencial valorizar e preservar suas tradições e conhecimentos.


Foto: As congadas - Congadeiro Domingos da Paixão (in memoriam). Crédito da foto: Hélio Dias (2015)


Para mais, é importante refletir sobre como a história oral é praticada e como as vozes das comunidades são representadas, é necessário evitar a apropriação indevida das histórias e das narrativas das comunidades, garantindo que elas sejam protagonistas na construção e na interpretação de sua própria história, onde a história oral deve ser uma ferramenta de empoderamento e autodeterminação, permitindo que as comunidades tenham controle sobre suas narrativas e contribuam para a compreensão coletiva do passado.

A Nova História, descrita por Bloch (2001), proporciona uma visão mais inclusiva e diversa da história, reconhecendo a importância das culturas populares e das comunidades marginalizadas na formação da sociedade e, com a valorização da oralidade, entendida como forma de construção da história, têm-se ampliado as perspectivas históricas, desafiando as narrativas dominantes e promovendo uma maior compreensão da pluralidade de experiências e identidades que compõem o tecido social.

Por fim, a história oral desafia os padrões tradicionais de documentação histórica, pois requer uma legitimação e respaldo científico para ser reconhecida. A institucionalização da história oral pode ser vista como uma forma de deslegitimar as comunidades que são marginalizadas pela narrativa histórica dominante. No entanto, a "nova história" busca dar voz aos grupos sociais historicamente excluídos, valorizando suas experiências e conhecimentos transmitidos pela oralidade.

Referências

BLOCH, Marc. Introdução e cap 1. In: Apologia da História. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SOUZA, Ercilia M. S.. Processos Identitários e suas Vicissitudes em uma Comunidade Quilombola. Belém, 2007 Dissertação (Psicologia) - UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ.
 

 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Ecomuseus e museus comunitários

Universidade Federal de Minas Gerais

Escola de Ciência da Informação – Graduação em Museologia

Disciplina: Tipologia de Museus - Trabalho Final

Professor: Luiz Henrique Garcia de Assis

Autores: Alessandro Rezende, Jonathan Moura e Mayra Luiza Marques

Ecomuseus e museus comunitários


A Nova Museologia é um movimento consolidado na década de 80 e considerado um dos mais relevantes da Museologia Contemporânea. Este movimento surge principalmente em consequência das demandas sociais reivindicadas num contexto imediatamente posterior aos conflitos, contestações e lutas revolucionárias ocorridas nas décadas de 60 e 70, visando incorporar a função social da instituição museu como caráter primordial e, por isso, contestador, criativo e transformador. Suas bases conceituais e filosóficas foram delineadas na Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972.  

A partir daí o movimento foi se consolidando progressivamente, culminando com o surgimento oficial do Movimento Internacional para a Nova Museologia - MINOM - em 1985, em Lisboa, como resultado da união das forças divergentes, transformadoras e questionadoras da museologia convencional, pregando uma pedagogia libertadora, a descolonização e a definição de compromissos museais.

A Declaração de Quebec (1984) e a Declaração de Caracas (1992) surgem como dois importantes documentos que auxiliaram na criação e consolidação dos Ecomuseus e Museus comunitários. Esses documentos, adotando conceitos da Nova Museologia, propuseram a implementação de uma museologia ativa dentro dos espaços museológicos, trazendo a discussão sobre pontos como a participação da comunidade dentro dos museus, uma pesquisa participativa e debates sobre patrimônio e território.

Como um exemplo concreto dessa nova ideia que emergia, como já citado anteriormente, temos o Ecomuseu, visto como instrumento de autogestão de uma comunidade, sem limites que não aqueles por ela definidos, sendo concebido, fabricado e explorado por um poder e uma população. O poder, com os especialistas, as facilidades e os recursos que fornece. A população, segundo suas aspirações, seus saberes, sua capacidade de análise. Após certo grau de evolução, eles acabam se integrando em sistemas oficiais e institucionalizam-se. Seus quatro elementos constitutivos, são: o território, a população (como agente), o tempo, o patrimônio (total: paisagens, sítios, edificações, objetos).

[Site do Ecomuseu de Itaipu: https://www.itaipu.gov.br/meioambiente/ecomuseu


A interdisciplinaridade nos museus é compreendida no sentido da necessidade de fazer interagir diferentes especialistas e conhecimentos para trabalhar, em toda complexidade, uma dada cultura. Os comitês de gestão dos museus são: o de gestão (administradores municipais ou regionais), o de usuários (membros da comunidade envolvida) e o científico (acadêmicos pertencentes aos quadros de universidades próximas, estudiosos de questões implicadas na proposta do ecomuseu).


Além disso, temos outro exemplo, o Museu Comunitário. Criado pela própria comunidade, no qual seus moradores tornam-se atores do processo de formulação, execução e manutenção do museu, além da construção de seu acervo, sendo ou podendo ser em algum momento, assessorados por um Museólogo.


O museu tradicional tem por objetivo servir ao conhecimento e à cultura, já o museu comunitário objetiva servir à comunidade e ao seu desenvolvimento. 


O museu de comunidade é um ser vivo, inacabado, como a própria comunidade, em constante movimento para se adaptar às mudanças que acontecem nela e em seu ambiente. Ele não deve ser trancado num edifício, restrito a uma coleção e uma exposição ou administrado por profissionais competentes sem conexão ou comunicação com a comunidade.

[Episódio Museu da Maré do Canal Conhecendo Museus: https://www.youtube.com/watch?v=TVHrrtM9UD0 ]


Na museologia popular todo território está envolvido, todo patrimônio da comunidade é levado em consideração e as exposições são apenas umas das técnicas de comunicação. 

O termo território, em sentido antropológico, é construído por uma dada população, a ele pertencente e com ela identificado.

Os museus comunitários enfrentam um problema recorrente: se o processo deve ser continuado, como mantê-lo vivo com o passar dos anos e com atores diferentes? Existem duas possibilidades:

  • O museu comunitário não conseguirá sobreviver à sua geração fundadora e então desaparecerá ou se tornará um museu institucional.

  • O museu aceitará a sua reciclagem a cada 20 ou 30 anos de modo a permanecer relevante.

A Museologia Comunitária preocupa-se em libertar as próprias pessoas da alienação cultural, ou libertar sua capacidade de imaginação ou iniciativa, ou liberar a consciência dos seus direitos de propriedade sobre seu patrimônio.


Bibliografia: 

BARBUY, Heloísa. A conformação dos ecomuseus: elementos para compreensão e análise. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.3 p.209.236 jan./dez. 1995.

PRIOSTI, Odalice Miranda. A dimensão político - cultural dos processos museológicos gestados por comunidades e populações autóctones. SEMINÁRIO DE IMPLANTAÇÃO DO ECOMUSEU DA AMAZÔNIA E DO PÓLO MUSEOLÓGICO DE BELÉM/ PA, 8-10 de junho de 2007, 26p.

VARINE, Hugues de. O museu comunitário como processo continuado. Cadernos do CEOM - Ano 27, n. 41, 2014, p.25-35.