UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Graduação em Museologia
Tipologia de Museus
Prof. Luiz Henrique Assis
Discentes: Ana Clara Marques Quintino de Souza Silva, Jéssica de Almeida Silva, Letícia dos Santos Lemes, Marcos Vinicius Caetano Versiani Paz, Yasmin Albertina Lopes Martins
Museus, Identidade e Poder
A evolução dos museus, desde gabinetes de curiosidades até museus etnográficos, está ligada diretamente à expansão colonial, justificando o confisco de artefatos e exposições que reforçam discursos coloniais. Casos como os de Saartjie Baartman e Julia Pastrana mostram como a ciência foi usada para legitimar desigualdades e o exotismo.
Saartjie Baartman, jovem sul-africana conhecida como "Vênus Negra", foi exibida em circos europeus como uma atração exótica, explorando suas características físicas para reforçar ideais racistas. Durante as exibições, era humilhada e até tocada por visitantes. Após sua morte, em 1815, seu corpo foi moldado e exposto no Musée de l'Homme, em Paris, onde permaneceu por décadas. Seus restos mortais só foram devolvidos à África do Sul em 1994, após pedidos de Nelson Mandela e da comunidade Khoikhoi.
[Img 1 “Saartjie Baartman”]
Julia Pastrana, nascida em Sinaloa, México, possuía ascendência indígena e hipertricose; condição que causa o crescimento excessivo de pelos. Exibida como atração nos EUA e Europa, Júlia foi intitulada de “mulher-macaco” e “selvagem”. Seu próprio marido organizava essas exibições. Após falecer em Moscou, foi embalsamada e seu corpo continuou sendo exposto em vários países.
[Img 2“Julia Pastrana”]
No Brasil, a reprodução desses discursos também marca a musealização. Surgiu a ideia da Decadência do Índio, o qual seria uma etapa a ser ultrapassada.
Os colonizadores classificaram as muitas comunidades indígenas em duas: Os tupi-guaranis e os tapuias/botocudos. Os tupi-guaranis, falantes do tronco tupi, eram os povos da costa, “mansos". Com o objetivo de embranquecer a população, incentivou-se a miscigenação. Foram ainda romantizados como o “bom morto” - eles tornaram-se inspiração de obras como Iracema, retratados em quadros e poemas como a extensão humana do território brasileiro a ser moldado pelo português.
[img. 3 - Moema de Victor Meirelles]
Já os índios botocudos, falantes do tronco macro-jê, assim chamados por conta de seus adornos corporais, eram os “selvagens de dentro do mato”. Retratados como monstros canibais, o governo português, por meio de incentivos à “conquista” de terras e prisão dos índios, fomentou seu extermínio. Esses povos se tornaram objeto de estudo dos cientistas e pesquisadores evolucionistas, reunidos nos museus e exposições etnográficas, fotografados, expostos e classificados como o mais baixo grau de gente.
[img. 4 - daguerreótipos de E. Thiesson, primeiras fotografias de indígenas.]
Um grande exemplo disso foi a expo antropológica de 1882 realizada no Museu Nacional do Rio de Janeiro, que contou com um zoológico humano - 7 indígenas foram enganados e levados ao Rio de Janeiro para serem expostos como o elo perdido entre macaco e homem.
É a fabricação da alteridade pela criação e hierarquização de raças para a dominação de umas e o benefício de outras. O museu foi produto e produtor desse discurso, agindo como depósito de objetos etnográficos e contribuindo para o apagamento da identidade indigena no Brasil. Até hoje os indígenas são vistos como “bichos do mato”, distantes do resto da população.
[ videos - brincar de índio ]
Ao longo do tempo, novas abordagens museológicas e etnográficas passaram a valorizar essas produções, principalmente a arte "primitiva", redescoberta pelas vanguardas artísticas no final do século XIX e início do XX. Essa arte passou a ser vista como uma fonte de renovação estética, desafiando as normas ocidentais.
A tensão entre tratar a arte "primitiva" como testemunho etnográfico ou criação estética é refletida nas curadorias dos museus, que precisam equilibrar "beleza" e "antropologia". Além disso, começou-se a valorizar as produções não-ocidentais, como as indígenas e africanas, como resultado de um profundo aprendizado cultural, desafiando a visão de que eram criações impulsivas.
Essa reavaliação também destaca as relações de poder envolvidas na aquisição e exibição desses objetos, especialmente no contexto globalizado, onde o mercado de souvenirs pode obscurecer seu valor original. A crítica às narrativas coloniais é essencial para uma apreciação justa da arte "primitiva", respeitando as culturas de origem e suas dinâmicas contemporâneas.
O Museu Quai Branly, em Paris, exemplifica a reavaliação da arte "primitiva" e das narrativas coloniais. Criado a partir de coleções etnológicas, ele se divide em zonas continentais e representa os desafios e contradições ao expor esses objetos. O museu sugere que, apesar de suas limitações, pode ser um espaço de diálogo e reflexão, oferecendo uma experiência crítica que vai além de uma simples apresentação estática de objetos, levando em conta as realidades culturais e sociais vivas.
Diante dessas práticas, surgiram novas museologias e mudanças na prática museológica. As mudanças na antropologia e etnologia também trouxeram uma nova maneira de estudar o objeto, investigando a fundo sua história e uso reais, ao invés de torná-lo mero suporte de ideias já prontas. Esta abordagem visa descolonizar narrativas e permitir que grupos originais recuperem um papel de liderança nas suas histórias e património. Estes espaços tornam-se locais de expressão autêntica e apreciação de vozes anteriormente marginalizadas. Nesse sentido, os museus assumem um papel de resistência, promovendo debates sobre identidade, memória e poder.
O desafio está em repensar não apenas as exibições, mas também os processos e as vozes envolvidas na construção dessas narrativas. A descolonização dos museus é um movimento fundamental para transformar essas instituições em verdadeiros espaços de inclusão e justiça histórica.
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