quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Os Gabinetes de Curiosidades e a formação das coleções particulares

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG

ESCOLA DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO - ECI

CURSO DE MUSEOLOGIA

ATIVIDADE ACADÊMICA CURRICULAR: ECI 097 - Tipologia de Museus

PROFESSOR: Luiz Henrique Assis Garcia

GRUPO: Anna Carolina Oliveira Souza Santos, Deise Joana Tomé da Silveira, Laura Braga Melo, Sâmela Campos Miranda Alves Andrade, Sofia Prado de Andrade 

Os Gabinetes de Curiosidades e a formação das coleções particulares


Os Gabinetes de Curiosidades, também chamados de Câmara das Maravilhas, são uma tradução da forma do colecionismo que ocorreu entre os séculos XVI e XVIII. Era uma prática realizada por estudiosos e, principalmente, homens da elite social, seja ela do clero ou da aristocracia. A formação dos Gabinetes evidenciava o poder, tanto financeiro quanto intelectual, da pessoa que o constituía, além de ser uma forma de afirmação do seu status.

Os criadores dos Gabinetes eram geralmente polímatas, pessoas especializadas em áreas diferentes, uma vez que não havia uma clara distinção entre os campos do saber. Os objetos presentes eram da categoria naturalia – feitos pela natureza – e artificialia – objetos feitos pelo homem.

Sua formação vinha em parte por causa da curiosidade, especialmente incitada pelo descobrimento das Américas, que produziu um questionamento quanto ao conhecimento até então familiar e incontestado por mais de mil anos. A necessidade de se provar, enxergar e crer nas novas espécies de fauna e flora desse novo território intensificava este interesse. 

A produção científica por trás dos Gabinetes de Curiosidades ocorria da seguinte forma: uma “maravilha” era descoberta gerando uma necessidade de explicação do fenômeno presente nesse objeto. O estudo científico surge da percepção de algo novo e fora do comum, Blom ao discorrer a respeito do “dragão” encontrado na região da Bolonha e levado a Aldrovandi, naturalista e importante colecionador da região, menciona que este elaborou um livro com os estudos conduzidos no corpo do animal que tinham como fim a compreensão do que ele era.

A dicotomia entre real e mito também estava presente na formação dos Gabinetes. Não era raro encontrar chifres de unicórnios, rabos de sereia, cabeças de gigantes nas coleções. Esse fenômeno pode ser explicado pela falta de conhecimento dos objetos vindos do resto do mundo, juntamente com o fato de que o Método Científico estava em processo de desenvolvimento, procurando explicar cientificamente muitos desses mitos. 

Por causa de sua natureza privada, as coleções tinham um acesso restrito. Os donos que permitiam o contato de outras pessoas com os seus Gabinetes, na maioria das vezes eram artistas, cientistas, colecionadores de uma classe semelhante. Era por meio deste contato que o conhecimento era compartilhado. 

Diversas questões contribuíram para a criação de um ambiente favorável à explosão dos gabinetes no século XVI, podemos citar as mudanças religiosas. O forte controle exercido pela Igreja na sociedade européia impactou o caráter das coleções, que estiveram inicialmente restritas ao campo religioso. Com a Reforma Protestante, muitos dogmas se enfraqueceram, abrindo espaço para o aumento significativo dos Gabinetes no século XVI. Outra questão foi o Renascimento que acabou criando uma cultura da curiosidade, onde o "espírito de indagação” do homem fez com que houvesse uma expansão do conhecimento que demanda novas abordagens e novos métodos investigativos, a curiosidade move o conhecimento.   

Os Gabinetes de Curiosidades assumiam diversas formas de acordo com a composição das coleções, podendo ser colocadas dentro de maletas, armários ou até dentro de salas privadas, como ocorria com os studioli. Além disso, as suas características poderiam se alterar conforme o país de origem do colecionador. Na região da atual Alemanha havia o Kunstkammer, o gabinete de arte, o Schatzkammer, o gabinete de curiosidades da natureza, e o Rüstkammer, um armário que continha itens bélicos, desde armaduras e escudos a armas utilizadas em batalhas, muito típico do mundo germânico.

Na Itália o studiolo se apresentava como um cômodo privado, algumas vezes anexado ao quarto do colecionador, ao qual os objetos, especialmente artísticos, ficavam expostos. Outro país que apresentava características próprias eram os Países Baixos, que em teoria por serem uma República sem uma aristocracia dominante e pela presença de uma forte Marinha Mercante, fez com o que o colecionismo se popularizasse na região. 

Um dos exemplos da formação de Gabinetes de Curiosidades no Brasil é o caso do Conde de Nassau-Siegen, que durante o seu governo no Brasil Holandês formou uma vasta coleção de itens brasileiros. Ao retornar para os Países Baixos deu vários desses objetos de presente para políticos e pessoas influentes, dentre elas o Rei Luis XIV da França, a fim de ganhar espaço e influência na corte do país. As dádivas de Nassau evidenciam como os Gabinetes de Curiosidades eram um indicador de status social.  

Outro exemplo ocorrido no Brasil foi durante o Período Joanino, que patrocinados pela Coroa, os colecionadores portugueses focavam em coleções artísticas, numismáticas, arqueológicas e naturalistas. A chegada da Família Real Portuguesa em meados do século XIX, trouxe consigo, dentre muitas coisas, o forte caráter do colecionismo. O acervo dos membros da família era composto por uma variação considerável de espécimes. Muitas das instituições construídas durante esse período, trazem a narrativa de instrumentos sociais no processo de reafirmação política e cultural para formação da nação com características próprias, apesar de ter um referencial europeu. 

A prática do colecionismo não é nova na humanidade, e se os Gabinetes do século XVI eram compostos por itens curiosos e restritos a uma determinada elite social, as coleções modernas, por outro lado, estão inseridas nos mais diversos grupos da sociedade e não possuem, necessariamente, o caráter de pesquisa presente na maioria dos Gabinetes. É fato que alguns tipos de coleções, como as de arte, ainda são restritas a uma camada muito pequena, no entanto, existem outras facetas e particularidades que foram adquiridas por tal prática na contemporaneidade. E são as questões socioeconômicas pautadas pelo sistema capitalista que estão no cerne dessas mudanças.

No decorrer da cultura colecionista, acervos formados pelo interesse acadêmico, científico e histórico foram abrindo espaço para coleções motivadas pela nostalgia, saudosismo e encantamento estético, que fazem parte da memória e construção identitária dos indivíduos. Assim, essas práticas foram se tornando mais acessíveis, na medida em que itens aparentemente banais poderiam adquirir grande significado como selos, cartas, moedas e miniaturas. Com o crescimento da sociedade industrial e da popularização do consumo de bens industrializados, empresas começaram a se beneficiar da prática colecionista, criando brindes e embalagens limitadas que passaram a ser guardadas devido a seu apelo estético e ideia de exclusividade, mostrando como a indústria cultural atua nesse meio.


REFERÊNCIAS 


BASCOPE, Kezia Freitas et al. A reforma protestante e seus desdobramentos. Revista Terra & Cultura: Cadernos de Ensino e Pesquisa, [S.l.], v. 38, n. especial, p. 160-180, abr. 2022. ISSN 2596-2809. Disponível em: <http://periodicos.unifil.br/index.php/Revistateste/article/view/2499>. Acesso em: 04 set. 2022.


BLOM, Philipp. O dragão e o carneiro tártaro. In: Ter e manter. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2003, p. 29-42.


BRIGOLA, João Carlos Pires. O colecionismo joanino. In: Colecções, gabinetes e museus em Portugal no século XVIII.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.


FRANÇOZO, Mariana de Campos. De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau. Campinas: Editora da Unicamp, 2014, p.169-229.


HERNÁNDEZ, Francisca Hernández. Manual de museología. Madrid: Síntesis, 1998. 


JANEIRA, A. L. A configuração epistemológica do coleccionismo moderno (séculos XV-XVIII). Episteme, Porto Alegre, n.20, janeiro/junho 2005, pp 23-36.


LINDBERG, Carter. História da Reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.


LITTLE, Lester K. Religious Poverty and the Profit Economy in Medieval Europe [Pobreza religiosa e a economia do lucro na Europa medieval]. Ithaca: Cornell University Press, 1978


Nenhum comentário:

Postar um comentário