UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS
GERAIS
05/07/2022
ESCOLA DE CIÊNCIAS DA INFORMAÇÃO
METODOLOGIA DE PESQUISA HISTÓRICA EM
MUSEUS
PROF. LUIZ HENRIQUE GARCIA
ALUNO: VITOR GOMES DOS SANTOS
ESTUDO DA
HISTÓRIA CULTURAL DA REPRESENTATIVIDADE GLS/LGBTQIA+ NO FIM DA DÉCADA DE 70, NO
BRASIL, A PARTIR DA EDIÇÃO EXPERIMENTAL (nº 0) DO JORNAL IMPRESSO LAMPIÃO DA
ESQUINA
Ao fim da
década de 70, em meio a ditadura militar no Brasil, mas já na fase de abertura
política, Winston Leyland, editor da Gay Sunshine (revista voltada para o
público homossexual de São Francisco, Califórnia) se reunia com mais onze
militantes intelectuais que eram autodeclarados homossexuais (HEEREN, 2011,
p.47) (LAMPIÃO, 2016). Segundo Agnaldo Silva, tudo começou quando Winston
Leyland, da Gay Sunshine Press, esteve no Brasil coletando material para uma
antologia de autores homossexuais latino-americanos. (LAMPIAO, 1978, p.5). Em
nenhuma fonte consultada foi possível compreender quantos foram, ou em qual
deles surgiu a ideia de formar um corpo editorial, com essas onze pessoas, mas
é distinguível ter havido mais de um encontro, sendo sediados tanto no Rio de
Janeiro, como em São Paulo, e também que em uma dessa reuniões se teve a ideia
de criar um jornal, brasileiro, que compreendesse a vida social e as ambições
civis do segmento homossexual da população, assim como suas tramas com as
demais minorias (HEEREN, 2011, p.47) (LAMPIÃO, 2016) (LAMPIÃO, 1978, p. 2),
chegando a abordar até mesmo a questão dos direitos dos animais, afirmando que
esta conquista tornava esse grupo, a mais exótica das minorias:
“E LAMPIÃO reafirma aqui seu conceito de minoria: é um grupo sobre
o qual a sociedade repressiva mantém seus tacões, mesmo que ele não seja
minoritário, como as mulheres (...).” (LAMPIÃO, 1978, p. 11)
Mais tarde, esse start foi classificado como compromisso histórico pela própria
imprensa alternativa. Assim, foi criado Lampião da Esquina e ficou decidido que
o seu Conselho Editorial fosse formado por: Adão Costa, Aguinaldo Silva,
Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Darcy Penteado, Francisco Bittencourt,
Gasparino Damata, Jean-Claude Bernadet, João Antônio Mascarenhas, João Silvério
Trevisan e Peter Fry (HEEREN, 2011, p.47). É importante ressaltar que foram
enviados diversos convites a mulheres para fazer parte do corpo editorial, mas
nenhuma se pronunciou (LAMPIÃO, 1978, p.4). Encarregados de traçar e manter a
linha editorial do periódico, lançaram primeiramente uma edição experimental,
de número 0 - lançada em abril de 1978, com a mensagem “circulação restrita” em
sua capa – que traz a nota editorial “Saindo do Gueto” na página de abertura,
deixando claro sua postura e seu lugar de incursão.
01 - Cabeçalho da edição experimental - Nº 0 - jornal Lampião da esquina |
“Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa liberalização
do quadro nacional em ano eleitoral, a imprensa notícia promessas de um
Executivo menos rígido, fala-se na criação de novos partidos, de anistia, de
uma investigação das alternativas propostas faz até com que se fareje uma
“abertura do discurso político brasileiro”.” (...) “É preciso dizer não ao
gueto e, em consequência sair dele. O que nos interessa é destruir a
imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo o qual ele é um ser que vive
nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual como uma
espécie de maldição (...).” “(...) Falando da discriminação, do medo, dos
interditos ou do silêncio, vamos também soltar a fala da sexualidade no que ela
tem de positivo e criador.” (LAMPIÃO, 1978, p.2).
Havia interesse de se estudar,
inicialmente, a representação do homossexual através das matérias do jornal, ao
longo de sua história, em paralelo com o contexto social, político, da época,
que o jornal buscava embarcar. Entretanto, por se tratar de um jornal
subversivo, político - de militância, voltado para mudar as estruturas da
linguagem (dos fatos) amplamente associada a representação do homossexual
brasileiro - mostra-se extremamente complexo em suas relações e, até mesmo,
denso em seu conteúdo. Assim, geralmente as matérias surgem como indícios de
diversos aspectos do status quo que
eram impedimentos para o trabalho da equipe editorial, ou mesmo, enquanto
resistências concernentes à conquista dos direitos humanos e da liberdade de expressão
deste segmento da população, nos trazendo profícuas análises e infinitos
caminhos possíveis de serem percorridos. Dado a fertilidade do material, o
estudo resolveu restringir sua abordagem ao momento da incursão inicial do
jornal Lampião da esquina, sua edição de lançamento. Esta autoproclamada
“edição experimental”, nos interessa tanto, justamente por condensar esta tal
densidade de conteúdo, aflorando perceptivelmente suas complexidades. Como por
exemplo, quando uma carta selecionada, intitulada de Apelo ao jovem guei,
levemente embasada em argumentos teológicos, afirma que “muitos (homossexuais)
adotam habitualmente um comportamento artificial em consequência de
discriminações mais ou menos veladas a que estão sujeitos.” (LAMPIÃO, 1978,
p.15). Tal visão encontra eco constante no artigo “Qual é a da nossa
imprensa?”, onde Frederico Jorge Dantas, questiona o momento atual e a inserção de uma imprensa
homossexual, falando de sua dificuldade com o boletim EROS, onde encontrou
“barreiras praticamente intransponíveis, quase todas erguidas pelas pessoas a
quem ele dirigia o boletim” (LAMPIÃO, 1978, p.5):
“Repressões sociais que nos são impostas pelo grupo
majoritário onde o machista credenciado desrespeita a própria regra das
liberdades individuais.” (...). (...)
“Reflexo exato da corrupção moral em que se encontra envolvida a
homossexualidade, vítima dessa discriminação esmagadora, a que continua sendo
imposta pelo estilo machista.” (...) “Dolorosos processos de autocondenação
destroem centenas de homofilios incapazes de enquadrar dentro de uma definição
social estável. Esta insegurança acaba originando comportamentos agressivos e
em alguns casos, contrário ao bem estar social do nosso próprio grupo.
E
sendo grave, afirma, “reconheço ser a bicha atual um estágio necessário para se
atingir um tipo ideal de homossexual conscientizado de sua própria realidade
sexual.” Chega finalmente a admitir “E procuro apoio naqueles que defendem a
tese de que o homossexual tem necessidades de se desenvolver dentro de uma
realidade contrária a esta” (LAMPIÃO,
1978, p.5). Talvez
indicando a necessidade que iria ao encontro, um pouco mais tarde, do
desenvolvimento e aplicação constantes das Teorias Queer.
02 - Capa da edição experimental - N° 0 - jornal Lampião da esquina |
De
fato, a representação do homossexual aparece de forma bem tensionada, na sessão
Tendências por exemplo, aparece o artigo Três vezes Darcy Penteado, que fala de
três projetos do artista pela cidade, dentre eles uma peça teatral chamada a
engrenagem do meio, onde um dos três protagonistas é um travesti. Pode-se
retirar o seguinte trecho da reportagem: “nela a temática homossexual é tratada
de maneira séria, direta, e os personagens são pessoas comuns, não caricaturas
ou “doentes” mentais, como tem acontecido sempre em peças do gênero. (LAMPIÃO,
1978, p. 13). E em diversos locais do jornal o vocábulo irmãos, clama por união
e tomada de autoconsciência coletiva. “Sabe, digo isso porque é difícil um homossexual sem a carga de
maldição que lhe impuseram.” (LAMPIÃO, 1978, p.7).
Havia
o forte entrave da censura à grande imprensa. Na imprensa brasileira o único
jornal de grande circulação que abordava a homossexualidade era o Jornal
Notícias Populares, jornal conhecido por sua abordagem sensacionalista ao
extremo, de vocabulário depreciativo e que trazia temáticas principalmente
ligadas a violência, crime e sexo (LAMPIÃO, 2016), ainda, João Silvério
Trevisan afirma que quando a palavra “lésbica” aparecia na edição da Folha de
São Paulo, eles cortavam e escreviam “feminista. Esses eram, portanto, fatores
desfavoráveis as discussões de gênero e representatividade GLS.
A saída a
censura era editar jornais alternativos – a chamada imprensa nanica. Um dos
nomes mais relevantes do jornalismo nanico era o Pasquim (falar mais). Entretanto,
o cineasta Luiz Carlos Lacerda afirma que ele tinha um corpo editorial
extremamente machista e homofóbico. Havia também jornais mimeografados, de
baixíssima circulação, como o Eros (LAMPIÃO, 1978, p. 5) e o GENTE GAY
(LAMPIÃO, 1978, p.14). Nessa conjectura, em 1976, no breve período de dois
meses, no Jornal da Última Hora, o ousado buscou instaurar-se através da Coluna
do Meio. De “cunho
informativo social e burlesco” (LAMPIÃO, 1978, p. 6) promovendo o “encontro” de
ideias dispersas, pela falta de espaço, para se discutir a temática
homossexual. Na época, recebia de 30 a 40 cartas por dia. Apesar disso, Celso
Curi, jornalista idealizador da coluna, acabou demitido, recebeu ameaças
(LAMPIÃO, 2016), e foi processado pelo Ministério Público do Estado de São
Paulo (LAMPIÃO, 1978, p. 6). A reportagem sobre o acontecimento, ocupa três
páginas desta edição de nº 0, e reporta se tratar do primeiro processo contra
homossexualismo na história judicial do Brasil. De um lado, evidenciando os
entraves políticos e sociais da época, e de outro, demonstrando a crescente
relevância da temática.
Portanto,
o Lampião não foi o primeiro jornal para o público homossexual, mas foi o
primeiro, a tratar da questão estrutural da linguagem que sustenta as relações
sociais e a visão do homossexual na sociedade brasileira sob uma ótica crítica,
ou seja, foi o primeiro a abordar a sexualidade de maneira pontual no Brasil.
(SANTOS, 2015, p. 136). Cada edição teve uma circulação de 10 a 15 mil
exemplares em todo o país (FERREIRA, 2012. p. 4).
NAS RUAS
Na época, os travestis e homossexuais eram marginalizados de forma violenta. O documentário Lampião da Esquina da diretora Lívia Perez, ainda no primeiro minuto, mostra uma reportagem do começo da década de 80 onde entrevistados afirmam coisas como “eu acho que não deveria existir homossexual”, outro fala “acho que deveria acabar de um jeito ou de outro, prendendo... matando...”, enquanto um outro entrevistado ao ser questionado se ele acha que devem matar travestis, afirma que “se a lei permitir.... seria uma boa”. O filme pode ser conferido abaixo:
Vale ainda
ressaltar outros assuntos que aparecem nessa edição como: prisioneiros de
consciência e o “apoio moral” da Anistia; homossexuais nos campos de
concentração, como eles eram distinguidos e o apagamento da temática na memória
coletiva; contos e poemas; tendências em voga (marcava uma sessão); sexualidade
de figuras emblemáticas da política; “marginalização” do gozo feminino e do
gozo homossexual; inseminação artificial em casais de lésbicas; arte
erótico-homossexual brasileira, os limites entre erótico e pornografia, e os
parâmetros que formulam o estatuto moral/imoral. E na seção Cartas na Mesa: Homossexualismo no
futebol, TV-Globo estereotipando a representação de seus atores como mais
“viris” do que realmente são, expectativas sobre a revista, solicitações de
fotos de homens nus, reclamações, queixas contra a polícia, e até desabafos.
REFERÊNCIAS:
FERREIRA, Carlos. Imprensa Homossexual: Surge o Lampião da
Esquina. Revista Alterjor 1(1), São Paulo, 2012. P 1-13.
HEEREN, José Augusto de Castro. O armário invertido:
comunicação e discurso sob a luz de Lampião. 2011. 238 f. Dissertação
(Mestrado)- Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação, São
Paulo, 2011. p. 45-49.
LAMPIÃO da Esquina. Lívia Perez. São Paulo, Doctela/Canal
Brasil, 2016. Disponível em: Lampião da Esquina - Agnus Guei do Labedisco
LAMPIÃO DA ESQUINA. Rio de Janeiro. Editora Lampião,
circulação restrita, nº 0, 1978.
PERET, L.E.N.
Pegação, Cidadania e Violência: as territorialidades do imaginário da população
LGBT do Rio de Janeiro. In: Revista Contemporânea. Ed. 14. Vol. 8. Nº 1. 2010.
SANTOS, Wendel Souza.
O movimento LGBT no Brasil (1978- 1981): um estudo sobre o Jornal
Lampião da Esquina. Temática. 2015.
Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/tematica/article/view/25245/13733.
Nenhum comentário:
Postar um comentário