sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A concepção dos museus sobre as questões indígenas no país [Tipologia 2015]



UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
ESCOLA DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
DEPARTAMENTO DE TEORIA E GESTÃO DA INFORMAÇÃO
CURSO DE MUSEOLOGIA
DISCIPLINA; TIPOLOGIA DE MUSEUS
PROFESSOR: Luiz Henrique Assis Garcia

Alessandra Maria Guimaraes de Menezes
André Luiz Lara Lima
Daniela Luisa Fernandes Barbosa
Luana do Carmo Pirajá Ferraz Santos
Maria de Lourdes Oliveira e Silva

A concepção dos museus sobre as questões indígenas no país

Às voltas com a aprovação definitiva da PEC 215 por parte do legislativo federal brasileiro, no qual o Congresso Nacional passa a dar a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas, assistimos a mais um capítulo de retrocesso na condução das combalidas políticas em defesa da causa indígena no país. Passados pouco mais de quinhentos anos do "descobrimento" da Terra Brasilis, o nativo dessa terra, perseguido desde sempre pelo colonizador, se vê na contemporaneidade, através da inócua atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), praticamente esquecido pelo Poder Público. O que se tem verificado, é uma sociedade que mesmo após a independência e a implantação do regime republicano no país, continuou a cumprir com “louvor” a política etnocêntrica e segregacionista promovida pelo colonizador europeu em relação a esses grupos autóctones.
No século XIX, para efetivação desse olhar etnocêntrico, a recente república brasileira lançou mão de um aparato institucional, que atuou como instrumento de persuasão, fundamentando didática e simbolicamente a concepção do índio como selvagem, primitivo, e por isso, inferior. Passível, portanto, de toda a sorte de intervenções por parte do poder "civilizador". E é nesse contexto que as instituições museológicas de caráter etnográfico vão atuar no Brasil, contribuindo para formar, junto com as instituições educacionais – e seus famigerados livros didáticos –, o arcabouço que serviu para legitimar a visão unilateral de superioridade de uma sociedade sobre outra.
Deste modo, o que se viu, foram inúmeras práticas estabelecidas nos museus, voltadas ao estudo e representação dos povos nativos pelo viés etnocêntrico. Dentro dessa dinâmica, que nega o direito a mínima autonomia para falar de si mesmo, o índio foi representado dentro dessas instituições, segundo a nossa ótica capitalista e urbana, sendo colocado sistematicamente como o "outro" que está sempre "aquém", nunca igual ao grau de civilização vivido nas cidades. Sem respaldo para ditar sua própria visão de mundo, o universo sociocultural das diversas etnias indígenas foi apropriado e musealizado a partir de um recorte político/ideológico que enfatizou o exótico e buscou elementos que confirmassem o quão estavam defasados em relação ao mundo "branco".
Para confirmar esse espírito da época, foi realizada na cidade imperial do Rio de Janeiro, em 1882, a Exposição Anthropologica Brazileira, que se tornou um marco na antropologia brasileira, na qual índios botocudos e xerentes foram expostos vivos como num zoológico humano (Imagem 1). Essa exposição, organizada pelo Museu Nacional e com o apoio e patrocínio do Imperador e Chefe de Estado, D. Pedro II, demonstrou como essa nova ciência se organizava, principalmente, sob o ponto de vista de articulação de um projeto de integração nacional, no intuito de colocar o país no caminho do progresso e da modernidade.

Imagem 1: Fotos de Marc Ferrez - O índio sob a ótica do Império. (Fonte: O índio na fotografia brasileira).

Essa exposição suscitou muita polêmica, ao colocar o índio como objeto científico, ideal para comprovar a infância dessas civilizações e ser usada como parâmetro para indicar quais povos deveriam sofrer intervenção e, até mesmo, serem dizimados. Hermann Von Ihering, então diretor do Museu Paulista e importante cientista da época, teria pedido o extermínio de certos grupos indígenas por ser um empecilho ao desenvolvimento e à colonização nos sertões do país.
No ano de 1910, o Decreto nº 8.072 criou o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) para dar amparo e assistência aos povos indígenas. Porém, esse órgão se orientava pela ideia de transitoriedade do índio e por uma política indigenista, objetivando civilizar o índio, tendo as suas ações marcadas por uma série de contradições – enquanto anunciava princípios de respeito à terra e à cultura indígenas, transferia esses povos de seus territórios de origem em favor de empreendimentos colonizadores.
Somente em 1942, em meio a um período de substituição da ideologia positivista por uma orientação científica moderna, foi apresentado, por meio do Decreto nº 10.652, o Regimento do Serviço de Proteção aos Índios, no qual era estabelecido o funcionamento de uma Seção de Estudos na sede do SPI, no Rio de Janeiro, trazendo novas concepções sobre a questão indígena no país. Essa seção tinha como atribuições manter um museu na capital do país e promover a divulgação dos vários aspectos da vida indígena, através de conferências ilustradas e exposições, visando despertar o interesse da sociedade pela causa. Mais tarde, em 1953, foi criado o Museu do Índio, sob a orientação institucional do antropólogo Darcy Ribeiro, que dirigia a Seção de Estudos do SPI. Inicialmente, instalado em um casarão no Maracanã (Imagem 2), ele ali funcionou por mais de 20 anos, até ser transferido para o Bairro Botafogo.

Imagem 2: Prédio do antigo Museu do Índio (Fonte: O Globo).

Nos seus primeiros anos, o Museu do Índio, realizou um intenso trabalho documental e ao poucos foi organizando o seu acervo, que se originou a partir das viagens e estudos promovidos pela Seção de Estudos do SPI e de importantes coleções, como a de Candido Rondon e de parte da coleção etnográfica do extinto Museu Simões da Silva. Porém, refletindo a realidade das políticas públicas que lidam com a causa indígena, a instituição perdeu a sua expressividade e relevância ao longo do tempo. Após o fechamento da SPI, em 1967, por má gestão, falta de recursos e corrupção funcional, foi criado a FUNAI, que passou a ser o órgão responsável pela gestão do museu. Esse período foi marcado pela criação do Estatuto do Índio, mas, principalmente, por uma visão de que grupos indígenas deveriam ser rapidamente integrados, como uma força de trabalho reserva ou como produtores de mercadorias comercializáveis, para as economias regionais em expansão e para as estruturas de classe rurais do Brasil, o que ia contra o respeito à diversidade cultural do país.
Com a nova Constituição de 1988, as concepções ideológicas vigentes foram mudando em prol do reconhecimento da diversidade e especificidade cultural dos índios. Entretanto, a demora na regulamentação do texto constitucional manteve e facilitou a permanência da antiga política. Mesmo com as tentativas da FUNAI e do Museu do Índio para a promoção dos direitos dos povos indígenas e para o reparo dos erros do passado, os conflitos que ainda ocorrem, revelam o lado mais perverso dessa política etnocêntrica que se mantém enraizada no seio da nossa sociedade. Mesmo sob a égide das novas concepções antropológicas de autonomia cultural e do discurso de retração das injustiças seculares, as instituições museológicas ainda perpetuam uma visão do índio como uma figura folclórica e estereotipada, endossando políticas segregacionistas.
Portanto, fica notório como a etnomuseologia brasileira se desenvolveu em conformidade a esse cenário político e social altamente questionável, expressando todo o descaso e morosidade com que as questões indígenas foram tratadas. Em meio a tantos conflitos, que ganharam novos desdobramentos pela aprovação da PEC 215 (Imagem 3), torna-se urgente, os nossos museus etnográficos saírem dessa posição letárgica em que se colocaram e se posicionaram de forma propositiva dentro das discussões. Para tanto, é preciso entender, que pouco surtirá efeito, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) promover eventos, como o recente "Primavera de Museus" que abordou a memória indígena, se cotidianamente nossas instituições continuam a reafirmar ideologicamente os resquícios temáticos, epistemológicos que ficaram entranhados durante o longo período de atuação do seu modelo clássico.
O que é preciso? Voz política ativa. Profissionais engajados em romper com esse laço colonizador de subjugação dos povos indígenas. Um museu que esteja realmente a serviço da nossa diversidade cultural. Um museu que procura questionar argumentos polarizadores, buscando experiências como os "estudos culturais" concebidos pela sociomuseologia, que colocam a cultura em primeiro plano, a fim de serem concebidos efetivamente como zona de contato, onde todas as etnias integrantes da cultura brasileira possam se encontrar e dialogar sem nenhum parâmetro hierárquico de distinção. Ainda que essa discussão pareça estar no campo utópico, cabe aos museus não se furtar desse compromisso com os povos indígenas. Primeiro, permitindo a esses povos voz ativa nas decisões, e segundo, buscando trabalhar com as possibilidades de encontro entre o diferente, onde o conflito não seja omitido, ao contrário, seja objeto de reflexão em busca da almejada prática da equidade.


Imagem 3: Mais de 200 indígenas xicrin, pataxó e kayapó protestaram na Esplanada dos Ministérios | Cimi (Fonte: Instituto Socioambiental).

Para maiores informações sobre a PEC 2015 acesso o site do Instituto Socioambiental no seguinte endereço eletrônico: http://www.socioambiental.org/pt-br/tags/pec-215.

Assista ao vídeo "PEC 215 – Que país você quer?" no YouTube:  https://www.youtube.com/watch?v=8eP_9bDHjCM.
  
Referências Bibliográficas


DUARTE, L. Por que o Brasil não consegue determinar o lugar do indígena na sociedade. Jornal Zero Hora. Publicado em 17/05/2014 - 16h03min. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2014/05/por-que-o-brasil-nao-consegue-determinar-o-lugar-do-indigena-na-sociedade-4502387.html>. Acesso em: 30 nov. 2015.

DURAND, Jean-Yves. Este obscuro objecto do desejo etnográfico: o museu. Etnográfica. Novembro de 2007. 11(2); 373-386.

FREIRE, C. A. da R. O Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio - Funai. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/anuencia/>. Acesso em: 30 nov. 2015.

MARTINEZ, P. H. A nação pela pluma Natureza e sociedade no Museu do Índio (Rio de Janeiro, 1953-1957). Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.20. n.2. p. 119-148. jul.- dez. 2012.

MOREL, M. Entre o exótico e o exato. RevistadeHistória.com.br. Disponível: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/entre-o-exotico-e-o-exato>. Acesso em: 30 nov. 2015.

LANGER, J.; L. F. RANKEL. A Exposição Antropológica de 1882. Revista Museu - Cultura Levada a Sério. Postado em 6 de julho de 2004. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=4245>. Acesso em: 30 nov. 2015.

ROCHA, E. O que é etnocentrismo. In. ROCHA, E.  Ed Brasiliense, 1984, pág. 7-22.

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SCHWARCZ, L. M., DANTAS, R. O Museu do Imperador: quando colecionar é representar a nação. Revista do IEB. n. 46, p. 123-164 fev 2008.
 

4 comentários:

  1. "se cotidianamente nossas instituições continuam a reafirmar ideologicamente os resquícios temáticos, epistemológicos que ficaram entranhados durante o longo período de atuação do seu modelo clássico." Concordo, mas o museu do índio no RJ demonstra na prática que isso nao condiz cem por cento com a realidade, mas também por ter participação no processo de concepção do que está/será exposto pela comunidade que está sendo exposta.

    "Voz política ativa. Profissionais engajados em romper com esse laço colonizador de subjugação dos povos indígenas"
    como vcs mesmo disseram, isso só será possível dando voz ativa aos indígenas, sem hierarquias, pois apenas o engajamento do profissional, museologo por exemplo, seriam insuficientes, pois os mesmos já estão com esse "olhar colonizador" enraizado de uma forma tão profunda em seu pensar, que esse processo de desconstrução so seria possivel com o "objeto de estudo".

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  2. Realmente para a verdadeira prática da autonomia e empoderamento desses grupos no campo das representações, somente com o efetivo poder de decisão dos mesmos. O engajamento dos profissionais seria de atuar na mediação do processo de maneira cuidadosa, no sentido de não intervir de modo incisivo e refletir a nossa ótica colonialista.

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  3. Realmente para a verdadeira prática da autonomia e empoderamento desses grupos no campo das representações, somente com o efetivo poder de decisão dos mesmos. O engajamento dos profissionais seria de atuar na mediação do processo de maneira cuidadosa, no sentido de não intervir de modo incisivo e refletir a nossa ótica colonialista.

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  4. Realmente para a verdadeira prática da autonomia e empoderamento desses grupos no campo das representações, somente com o efetivo poder de decisão dos mesmos. O engajamento dos profissionais seria de atuar na mediação do processo de maneira cuidadosa, no sentido de não intervir de modo incisivo e refletir a nossa ótica colonialista.

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