Universidade Federal de Minas Gerais
Bacharelado em Museologia
Metodologia de Pesquisa Histórica em Museus
Docente: Luiz Henrique Assis Garcia
Discentes: Alessandro de Oliveira; Alice Martins; Clarissa Tomasi; Flávia Valença; Lorena Gonçalves e Suzane Rodrigues
Introdução
Este trabalho analisa a partir de uma perspectiva histórica, cultural e museológica o samba como instrumento de resistência e afirmação identitária, tomando como base as trajetórias de duas cantoras mineiras: Maria Aparecida Martins e Clara Nunes. Para isso, aborda as canções “13 de Maio” (1979) de Maria Aparecida e “Jogo de Angola” (1980) interpretada por Clara Nunes, buscando evidenciar os eventos e referenciais históricos, políticos e sociais presentes em seus versos. O recorte se justifica tanto pelo papel dessas artistas na construção simbólica do Samba Mineiro, quanto por suas atuações enquanto mulheres inseridas nesses contextos distintos de racialização, mercado musical e expressões culturais e religiosas. A metodologia segue um caminho comparativo entre as produções musicais, abordando as canções como documentos históricos e culturais que permitem refletir sobre a diáspora africana e suas manobras de sobrevivência, como a malandragem e o samba refletindo a realidade como forma de memória e resistência.
Maria Aparecida Martins (1939/1940-1985) - Música 13 de Maio
Nasceu em Caxambu (MG); foi curimbeira, cantora, compositora, médium e mãe de santo, reconhecida por integrar elementos da religiosidade afro-brasileira ao samba, destacou-se por sua militância cultural e espiritual em um contexto de pouca visibilidade para mulheres negras compositoras. Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro aos 10 anos, onde começou a trabalhar como passadeira, iniciando suas composições aos 13 anos. Participou do programa A Voz do Morro, de Salvador Batista, por uma década, e também se apresentou nas rodas de samba do Grupo Opinião, um importante espaço de resistência à ditadura militar, que promoveu uma arte de oposição ao regime (SÁ, 2020).
Foi mãe de 2 meninos, porém devido a circunstâncias difíceis, foi obrigada a entregar os filhos para adoção logo após o nascimento. Aparecida alcançou o sucesso em concursos de música carnavalesca e festivais, com composições como “Meu Rio Quatrocentão” e “Zumbi, Zumbi”. Em 1968, tornou-se a segunda mulher (antes dela apenas Dona Ivone Lara) a vencer uma disputa de samba-enredo, com a obra "A Sonata das Matas", para a escola Caprichosos de Pilares. Não se tem registros de mulheres mineiras, anteriores à Aparecida, com projeção nacional significativa no samba, o que torna sua história tão importante para a trajetória feminina no samba mineiro.
A música "13 de Maio", composta por Maria Aparecida Martins em 1979, é uma obra profundamente enraizada na história e na espiritualidade afro-brasileira. Ela entrelaça elementos históricos, culturais e religiosos para celebrar a luta, a resistência e a ancestralidade do povo negro no Brasil. A música tem como eixo central a data de 13 de maio de 1888, dia da assinatura da Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão no Brasil. No entanto, ao invés de uma comemoração vazia, a canção a ressignifica como símbolo de memória, resistência e ancestralidade negra, abordando com criticidade e espiritualidade a condição do povo negro pós-abolição. A introdução saúda a princesa Isabel, que tradicionalmente é vista como a "redentora", mas a letra logo desloca o foco dela para os verdadeiros protagonistas da resistência negra, como Zumbi dos Palmares, Zé do Patrocínio entre outras figuras que contribuíram na luta contra a escravidão.
Clara Nunes (1942-1983) - Música “Jogo de Angola”
Nasceu em Paraopeba (MG), órfã de pai e mãe aos 6 anos de idade, Clara foi criada pelos irmãos. Aos 14 anos começou a trabalhar em fábricas e mudou-se para Belo Horizonte dois anos depois, onde intercalou o trabalho com a carreira musical. Em 1965 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde lançou seu primeiro LP pela Odeon. No início de sua carreira venceu concursos de canto e se apresentava nas rádios com músicas de estilos diversos, como boleros, samba-canção, bossa nova e da jovem guarda. “Guerreiro de Oxalá”, em 1969, é a primeira música com referência à religião de matriz africana que Clara Nunes grava. Na década de 1970, Clara constrói então uma imagem afro-brasileira com a produção de Adelzon Alves e do estilista carnavalesco Geraldo Sobreira (Matos, Guerra, Ladeira, 2025).
A partir de então, Clara Nunes se consolida no cenário musical brasileiro e difunde sua visão pessoal e sua defesa pela cultura afro-brasileira mesmo sendo uma mulher de pele branca. A cultura afro-brasileira está presente na religião, nas vestimentas, no estilo de vida. Na década de 1970, o programa Fantástico reproduziu por quase dez anos videoclipes da cantora. Para a emissora, os vídeos eram um sucesso de audiência e uma estratégia de conteúdo durante a ditadura, para amenizar o cenário político no horário nobre. Para Clara, essa repercussão era uma forma de estar inserida no mercado da música e, ainda assim, divulgar a cultura afro-brasileira (Coelho, 2023).
A música “Jogo de Angola” interpretada por Clara Nunes narra a história da Capoeira como tática de resistência resgatando a luta corporal dos negros escravizados como símbolo de enfrentamento e preservação cultural. A música pode ser uma reflexão a malandragem e a sobrevivência, “a dança que era festa para o dono da terra/virou a principal defesa do negro na guerra.” A estrutura narrativa da música acompanha o ciclo histórico da escravização e a luta por liberdade utilizando referências culturais afro-brasileiras como berimbau, quilombo e o samba. Clara transforma músicas em ferramenta de memória social e identidade do povo negro no Brasil.
O contexto histórico
As trajetórias artísticas de Maria Aparecida e Clara Nunes são indissociáveis da singularidade de suas expressões na arte e do contexto social e histórico no qual estavam inseridas. Ambas se destacam da e na coletividade promovendo impacto sócio-cultural.
Clara e Aparecida ganham destaque em momentos diferentes, no contexto da Ditadura Militar (1964-1985), onde a censura restringia as produções artísticas da época. Com o processo de redemocratização, iniciado no final da década de 70, período em que o regime militar perdia força, mudanças significativas ocorreram para toda a sociedade brasileira. A partir de então, uma maior liberdade de expressão marcou as produções artísticas o que influenciou fortemente a cultura e a música que era produzida; temas antes censurados, retratando tensões sociais, culturais e políticas, passaram a estar presentes nas composições (Santanna, 2019).
Conclusão
Partindo da análise, nota-se que as raízes ancestrais e o contexto histórico social impactam na música e na formação de artistas. As duas mulheres analisadas, mesmo nascendo em contextos de pobreza e longe da grande capital do Rio de Janeiro, conseguiram trilhar seus caminhos na música, ainda que permeado de lutas e repressão causadas tanto pela configuração política da época, como por abordar questões de cunho racial que vão contra as noções didáticas de história abordadas no período, contribuindo assim de forma grandiosa para a construção do samba.
Bibliografia
COELHO, Renato. “Não temo quebrantos porque eu sou guerreira”: o legado de Clara Nunes. Jornal da Unesp, 28 abr. 2023. Disponível em: https://jornal.unesp.br/2023/04/28/nao-temo-quebrantos-porque-eu-sou-guerreira-o-legado-de-clara-nunes/. Acesso em: 02 jun. 2025.
MATOS, A. M.; GUERRA, I.; LADEIRA, M. C. (Org.) Clara Nunes: eu sou a tal mineira. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura: Museu da Moda: Viaduto das Artes, 2025.
SÁ, Marco. Aparecida, a voz dos orixás. 13 maio 2020. Disponível em <https://pitayacultural.com.br/musica/aparecida-a-voz-dos-orixas/>. Acesso: 18 jun. 2025.
SANTANNA, M. O ABC do samba: Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes. In. SANTANNA, M. As bambas do samba – mulher e poder na roda. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2019. p. 135-158.