sábado, 13 de abril de 2019

O OUTRO É O NOVO E O DIFERENTE DE MIM: A RELAÇÃO ENTRE MUSEUS E A ALTERIDADE DOS CONTATOS - Tipologia de museus 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
ESCOLA DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
GRADUAÇÃO EM MUSEOLOGIA
TIPOLOGIA DE MUSEUS
LUIZ HENRIQUE GARCIA
DANIEL BATISTA, ELISON SILVA E LUCAS THIAGO

O OUTRO É O NOVO E O DIFERENTE DE MIM: A RELAÇÃO ENTRE MUSEUS E A
ALTERIDADE DOS CONTATOS

Inicio esse texto com um empenho de mensurar contatos culturais a partir da definição de
“contato” que, segundo o dicionário Priberam, se compõe por contiguidade, convívio,
comunicação, influência e proximidade. A conexão estabelecida por esses elementos
semânticos na composição de “contato” revela a complexa teia que as relações humanas
desenvolvem desde há muito, ainda antes da revolução agrícola, ocorrida há cerca de dez
mil anos. O contato entre diferentes grupos humanos ainda faz emergir as distinções, o
intento em dominar a técnica, o conhecimento, os valores e os sujeitos sociais, e o
estabelecimento de códigos de linguagem, crenças e outros elementos culturais comuns
dentre eles.

James Clifford (1999), ao escrever sobre os contatos de viagens em “Itinerarios
Transculturales” se depara com a complexidade que envolvem as identidades e suas
relações dentro e fora do seu contexto sociocultural. Isso porque identidade se mostra um
bem da relação que o ser constrói com o meio ambiente e consigo mesmo. É por meio da
comunicação sensível-interpretativa que os sujeitos interpretam, conhecem, categorizam e
classificam as suas experiências em um processo cognitivo e de ação. Também o é por via
da sua ação sobre o lugar e os seus semelhantes que as experiências se tornam memórias
individuais e coletivas, formando um movimento de internalização e externalização das
experiências e compreensão da realidade articulada entre eles em dado espaço e qualidade
dos seus contatos.

Poderíamos dizer que ao longo da história das sociedades humanas, as relações de poder
teriam como objetivo tornar homogêneo os signos, a cultura e a compreensão da realidade
de um indivíduo, subtraindo a subjetividade das experiências e a percepção do ser
enquanto indivíduo ao se valorizar a comunidade, os elementos resultados das experiências
coletivas naquele espaço, ainda inseridos nos limites das distinções entre os corpos que
compõem aquela sociedade como idade, gênero, etnia e as necessidades especiais de
cada corpo.

Para a filosofia, os contatos entre diferentes corpos formam uma estrutura de afetos, a qual
se relacionam de acordo com as categorias de distinção construídas por eles para
diferenciar os papéis sociais e qualidades dos sujeitos que compõem o grupo. Ao se
afetarem por meio das distinções das identidades, esses indivíduos criam a ética, advinda
da compreensão das implicações das ações sobre o outro e o ambiente que interagem
(SPINOZA, 2013). Dessa forma, o compartilhamento experiências coletivas e individuais -
orientadas pela ética - elegeriam memórias coletivas que caracterizariam a identidade para
a manutenção de uma tradição a ser mantida, pois ela conferiria a coerência social e o
sentimento de pertencimento aos sujeitos.

A complexidade dos contatos analisados por Clifford (1999) se daria pelo trânsito das
identidades em um mundo interconectado pela isonomia de alguns elementos culturais e a
tecnologia a permitir trocas de conhecimentos e experiências entre culturas evidenciando os
contrastes de maneira a desenvolver desigualdades entre elas. A migração seria um
exemplo do que esse contato causaria sobre os indivíduos expatriados ou viajantes: quem
se desloca do seu lugar para outro leva como referência a sua cultura, suas memórias,
experiências de uma vida que lhe incorporam e o torna quem ele é comprimido em seu
nome, em seu corpo para um outro contexto sociocultural, um lugar onde as referências são
outras, onde ele seria parte de uma minoria com pouca ou nenhuma expressão naquela
esfera social, um corpo a se adaptar àquela estrutura sociopolítica que orienta a construção
identitária de quem ali habita. Esse contato proporciona ao estrangeiro estranhamentos, a
amplitude das diferenças identitárias e dos fatores de distinção entre ele e os demais. À
medida que o contato se daria, seria possível dizer que o estrangeiro sofreria uma certa
contaminação daquela cultura, uma dosagem necessária para lidar com a burocracia e
estabelecer relações de acordo com a ética daquela sociedade. À transculturalidade haveria
um limite de transmissão de elementos culturais visto que o sujeito manteria consigo
elementos de sua cultura nativa, vivenciada e experimentada ao longo da sua vivência
naquele lugar. Algo que, para Clifford (1999), seria intrigante, pois os estudos sobre
interculturação e transculturalidade apontam para uma transmissão em que se consideraria
a adaptação dos sujeitos ao novo contexto político-sócio-cultural, também tendo como
obstáculo o desenvolvimento do pertencimento à uma cultura não praticada nesse novo
lugar. Quais seriam, portanto, as influências que manteriam os indivíduos conectados à sua
cultura nativa ou ancestral na contemporaneidade?

Nas sociedades complexas, as construções identitárias sofrem influência da globalização na
medida que se percebem inseridas em uma estrutura em que os câmbios atualizam a sua
cultura, principalmente pela dinâmica de mercado. Trata-se de sociedades que se projetam
para o futuro em prol do progresso, rompendo com a manutenção das tradições na medida
em que inserem novas técnicas e tecnologias no circuito social, aumentando a rotatividade
dos elementos culturais e seus objetos, reduzindo o tempo para a obsolescência das
tecnologias e das modas, tornando-os pertencentes de um passado demasiado distantes da
prática quotidiana. Nelas, o passado se mostra presente enquanto referência estética,
assumindo a plasticidade da canonização dos seus elementos e da criação de lugares de
memória, que para Nora (1994) seria a ruptura com o equilíbrio para lidar com a ascensão
da “consciência de si sob o signo do terminado”. Se a memória pode ser entendida como
resultado da experiência, nessas sociedades em que a temporalidade é fragmentada entre
passado, presente e futuro, na qual o passado seria algo distante da realidade, uma
nostalgia presente nos relatos de experiências ou na estética das coisas, e dele o futuro
emerge como uma construção contínua de um projeto social, e o presente se desponta
como um tempo em que os indivíduos se relacionam com as suas memórias e as projeções
de um futuro essas sociedades, portanto, se organizam sob dois afetos centrais de
temporalidade, a esperança e o medo: a esperança de um futuro melhor e o medo do que
esse futuro poderá se tornar, ou seja, um tempo das incertezas permeado pelo desamparo
(SAFATLE, 2016). A criação dos lugares de memória se tornaria uma contrapartida às
incertezas temporais e de identidade das sociedades complexas. Segundo Nora (1994), ao
se perder os meios de reviver a memória elas concebem esses lugares para reverenciarem
uma memória esfacelada.

Esses lugares se tornam, portanto um espaço de publicização de evidência material da
existência humana, compreendendo as singularidades das relações entre humanos e o
meio ambiente que interagem. Dessa forma, despontando, talvez, como um movimento
paralelo ou de resistência à homogenia da identidade nacional. Um movimento de
resistência das subjetividades por direitos e igualdade por compreenderem seus corpos
enquanto políticos, indivíduos estruturantes da complexidade social, articulam-se
conscientes de que as políticas e éticas que lhes afetam têm como gatilho os seus lugares
sociais e geográficos. Esse movimento contemporâneo de valorização da subjetividade
retorna faz emergir um passado pela valorização da ancestralidade, de uma identidade a
ser apropriada pelo Estado para a manutenção da sua legitimidade e atualização da
identidade nacional.



Museu do Homem , França.

A musealização dos elementos da cultura material remonta à toda a construção do sujeito
social nessas sociedades. E os museus enquanto lugares de legitimação de uma cultura,
conferem importância aos objetos musealizados os tomando como signos da identidade dos
grupos e os fatos sociais que afetam as subjetividades. Se os museus públicos, portanto,
surgem no século XIX como cenário da história, ao salvaguardar o patrimônio nacional, no
século XXI as lutas das subjetividades por direitos atualizam esse fenômeno, tornando-o
meio de comunicação das suas relações na estrutura social em uma ação de
descentralização do poder sobre as suas memórias - outrora detido pelo Estado e uma elite
intelectual e econômica.

Michael Ames (1992) questiona a quem pertence o direito sobre os objetos de uma cultura,
ao iniciar uma discussão sobre espólios e o direito que alguns grupos e sociedades
demonstram possuir ao incluírem nos museus elementos da cultura material de outros
grupos e sociedades, narrando-o de acordo com as suas construções sociais sobre
realidade, ética e seus valores. Esses contatos estabelecidos pela alteridade destitui o outro
sobre si, ao interpretá-lo de acordo com um background composto por experiências e
construções sociais vividos por uma coletividade diferente da representada. Essa
destituição ocorreria pela compreensão de ambos sobre suas identidade, afirmadas para si
próprios e que agora as afirma para o outro que o destitui de suas convicções sobre si,
apresentando-se enquanto singular e detentor de uma verdade que seria total e totalizante,
provocando ao outro questionamentos sobre os seus atributos. Esse contato estabelece,
portanto, distinções entre ambos e uma hierarquia entre ambos, uma superioridade
legitimada pela força seguida pelos esforços da aculturação do grupo dominado (SAFATLE,
2016). Essa relação de imperialismo cultural pode ser percebida na reflexão de Ilana Goldstein
(2008) sobre a criação do Museu do Homem na França nos anos 1920, e mais tarde
atualizada na construção do Musée du Quai Branly. Ela analisa a aproximação da arte e
antropologia em um período em que povos indígenas das Américas, África e aborígenes
australianos eram percebidos como exóticos, resultado da crença cristã de heresia desses
povos, e mais tarde, no século XVIII, atualizada pela ciência estruturalista que definia esses
povos como incapazes de desenvolverem as suas culturas pelo que se considerava
“déficits” cognoscitivos, dentre outras formas de pejorativização dessas populações e suas
culturas.

Estudos baseados no estudo “ Origin of Species ” de Charles Darwin (1859), impulsionou
vários estudos baseados na evolução das culturas humanas baseadas na evolução da
cultura material e anatomia dos corpos de povos ameríndios, negros e algumas populações
da Ásia, bem como novas expedições colonialistas tendo a evolução como pretexto.
Foi influenciada sob esse contexto que a arte e a antropologia encontraram a sua
renovação no século XX. A arte se afirmava moderna e modernista ao se apropriar das
técnicas e estética indígenas ameríndias e africanas, enquanto a antropologia desenvolvia
estudos que criticavam a abordagem evolucionista das culturas difundidas nos séculos
anteriores, inseria nas coleções de museus objetos etnográficos e os expunha orientados
por uma narrativa eurocentrada. A arte moderna na Europa foi marcada por artistas que
pretendiam legitimar uma vanguarda reconhecendo a genialidade dos artistas africanos,
asiáticos e a estética ameríndia em um ato de justaposição a eles marcado pelo intento de
renovação canônica, em que a arte e o artista do outro continente seria compositor do plano
de fundo da sua projeção e da renovação artístico-cultural europeia. Enquanto os objetos europeus ganharam em suas legendas o título de obra de arte as africanas e ameríndias foram descritas como objetos etnográficos e sua produção artística como “arte primitiva”, estabelecendo uma hierarquia entre as culturas, destituindo-as dos atributos que a constitui e a legitima uma singularidade que não caberia entre ambas a hierarquia e a exotização dos seus corpos e elementos culturais.

Outro exemplo que suscita a espetacularização do outro se encontra na canção escrita por
Gilberto Gil e Caetano Veloso, cantada por Rita Lee e os d’Os Mutantes em que fazem uma
alegoria à política Romana para manter a população fiel à ordem estabelecida por seus
líderes a fim de conquistarem seu apoio.

“Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”
(Veloso/Gil, gravado por Os Mutantes. Panis et Circensis , 1968. Grifo nosso)

“Panis et Circensis” teve origem na Sátira X do humorista e poeta da Roma Antiga Juvenal.
Alegava-se que bastava satisfazer a população com o entretenimento (dos Coliseus) e com
a alimentação para que seguissem totalmente ignorantes perante à política “Pão e Circo”.
Sua sátira, apesar de bastante antiga, é retrato de outros períodos históricos. Pensar em
museus, identidade e poder é igualmente pensar sobre a exploração colonialista durante o
período das grandes navegações europeia e na neocolonialização dos séculos XX e XXI.
Durante as explorações predatórias do desbravamento das Américas, África e Oceania, se
depararam não somente com os povos indígenas destes locais mas com a fauna, flora e os
sítios arqueológicos de civilizações antigas - como os antigos Templos Maoris ou
majestosas construções dos povos Mayas - que denotaram a ambição do povo europeu de
se apropriar de bens para consolidar a soberania de suas nações sobre o território e
aquelas culturas.

John M. Mackenzie, (2011) afirma que os os museus durante o período colonial,
interessavam-se da expressão ocidental convictiva da racionalidade, em contrapartida dos
gabinetes de curiosidades que continham o que se era desconhecido e repleto de
incógnitas, estimulando-os à percepção exótica dos objetos. Este ponto de divergência
entre museus e gabinetes de curiosidades se dá pela reunião de objetos curiosos e, até
mesmo, atribuindo-se o misticismo sobre eles nos gabinetes, enquanto nos museus,
exibiam e comunicavam o que era tangível e conhecido pela ciência estruturalista.
Este Pão e Circo que citei anteriormente se dá pela busca incansável do imperialismo de
capturar elementos materiais de outras culturas e reuní-los em um único lugar para
exposição como ocorrido em 1851 na grande Exibição do Palácio de Cristal com o intuito de demonstrar a globalização científica europeia. Paralelamente, enquanto nos territórios
colonizados os museus demonstravam o progresso (do ponto de vista europeu) exibiam um
espetáculo para suprimir os possíveis “gaps ” entre o progresso das metrópoles e colônias.
Tais “gaps” podem ser atribuído aos ideais iluministas que se afloraram no século XVIII, que
defendiam a razão, o homem como sujeito único e livre que age em prol do
desenvolvimento tecnológico e científico por intermédio do conhecimento sobre si e do
mundo. Os museus, portanto, tinham, no século XIX um caráter civilizatório; utilizavam do
conhecimento científico com o intuito de exporem o desenvolvimento através da
espetacularização, como forma de promoção das metrópoles e seus líderes.


A canção “Panis et Circensis” interpretada por Rita Lee e Os Mutantes em 1968 - que deu
origem ao tropicalismo brasileiro - faz tal alegoria do passado distante dos períodos
greco-romanos a fim de se manter a ordem social e a coerência identitária nas colônias que
tinham os museus como meio de comunicação para a promoção do progresso da metrópole
e da colônia, tendo a ciência e a educação como artifícios para a manutenção do sistema
político e a identidade dos conterrâneos.

Assim, os espetáculos dos museus aconteciam quando se promoviam grandes exposições
a fim de derrubar fronteiras de espaço e tempo que evidenciavam o gap entre o progresso
das colônias e das metrópoles, e tinham o intuito de demonstrar que tal progresso era
global e globalizante, ao passo que reforçavam a soberania das metrópoles sobre as
colônias.


REFERÊNCIAS
 
AMES, Michael M. Cannibal tours and glass boxes: the anthropology of museums .
Vancouver: UBC Press, 1992.

CLIFFORD, James . Quatro museus da costa norocidental: reflexões de viagem. In:
Itinerarios transculturales. Barcelona: Gedisa, 1999.

DIAS, Anderson. Política do Pão e Circo. Disponível em:
http://www.parafrasear.net/2007/11/poltica-do-po-e-circo.html. - (Acesso em 21/11/2018 às
18h33m)

GOLDSTEIN, Ilana. Reflexões sobre a arte "primitiva": o caso do Musée
Branly. Horiz.antropol. [online]. 2008, vol.14, n.29 [cited 2013-08-27], pp. 279-314.

MACKENZIE, John M. Museums and empire: natural history, human cultures and colonial
identities .Manchester: Manchester University Press, New York: distributed exclusively in the
USA by Palgrave Macmillan, 2009.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

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