sábado, 24 de maio de 2014

Passados presentes - pensando as políticas da memória

Os debates sobre a memória, seus sentidos sociais, seus usos políticos, sua materialização em memoriais, museus e exposições, fervilham. No Brasil, tais debates ganham contornos ainda mais intensos em face da efeméride dos 50 anos do Golpe de 1964. Estou convicto que este é um dos pontos-chave para atuação dos museólogos que estou ajudando a formar. Ao mesmo tempo representa, desde muito, um interesse e um foco decisivo de minha própria formação como historiador [um texto meu sobre o assunto, aqui]. Enquanto sigo na leitura de Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory, de Andreas Huyssen, acabei de ver que foi editado “Culturas do passado-presente” (Ed. Contraponto, tradução de Vera Ribeiro), lançado essa semana. 

"Em 10 ensaios, ele analisa obras do sul-africano William Kentridge, do argentino Guillermo Kuitka e da indiana Nalini Malani. Comenta ainda os impasses enfrentados por museus e memoriais dedicados a tragédias como o Holocausto e os atentados de 11 de Setembro, que repetem fórmulas como uso de água, pedra e listas com nomes das vítimas. Traça também a evolução do debate internacional sobre políticas da memória, desde a discussão sobre o passado nazista na Alemanha depois da Segunda Guerra até as grandes transformações mundiais dos anos 1980 e 90, com o fim das ditaduras na América Latina, do apartheid na África do Sul e do bloco comunista no Leste Europeu." [matéria completa, aqui]

Ainda não vi o índice mas pela entrevista que o autor concedeu a Guilherme Freitas de O Globo creio que uma parte destes ensaios podem ter sido traduzidos do livro que estou lendo. As discussões que conduz são extremamente pertinentes. Separei um trecho que toca numa questão central, e ao mesmo tempo delicada. Acho que é fundamental para todos que atuam e atuarão nesse campo minado da memória social ter clareza sobre os muitos usos políticos e econômicos aos quais ela pode se prestar. 
Você já escreveu sobre “abusos de memória”. O que essa expressão pode significar?

Mesmo entre muitos pesquisadores da área, existe a noção ingênua de que a memória é sempre “boa”, porque seria um antídoto para o esquecimento, o silêncio e a repressão. Quando se fala da memória das vítimas de ditaduras, é claro que isso é verdade. Mas há casos mais complicados. Na época do esfacelamento da Iugoslávia, por exemplo, Slobodan Milosevic manipulou a memória das batalhas contra os muçulmanos no século XIV para justificar a limpeza étnica e assegurar sua base de poder. É um caso de memória a serviço do nacionalismo radical. A memória está sujeita a abusos políticos e também econômicos. Sempre digo que há uma espécie de “máquina da memória” operando na indústria cultural. Há toda uma série de “modas retrô” na música, no vestuário, na arquitetura etc. E hoje a internet faz com que a cultura do passado esteja disponível numa escala sem precedentes. A questão é: isso produz só memória ou também amnésia? O cineasta alemão Alexander Kluge já falou em um “ataque do presente contra o resto do tempo”. Quando tudo se torna presente, corremos o risco de deixar de lado o passado e o futuro.
Tal problemática encontra ressonância imediata na reportagem de Camila Brandalise O espetáculo do terror da revista Isto É sobre o Museu Nacional do 11 de Setembro,  "(...) uma estrutura de 10 mil m² – com fotos, vídeos, áudios, pertences das 2.977 vítimas, pedaços de avião, colunas de aço e vários outros artefatos relacionados ao acontecimento – instalada onde ficavam as torres gêmeas." [matéria completa, aqui].  Segundo a autora, "[e]ssa é uma discussão atual na museologia moderna". Ângelo Oswaldo, presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) lhe concedeu o seguinte depoimento: “Hoje em dia os museus não estão mais submetidos somente à liturgia do passado. Eles estão mostrando uma nova dinâmica que tem esse lado espetacular, grandioso”. A monumentalidade, evidentemente, não é novidade quando se trata de museus. O que muda é o fato de que, numa sociedade do espetáculo, a forma de tornar o passado presente está sujeita a incorporar a forma da mercadoria e ser consumida instantaneamente, embalada na estética como fim em si mesma que desconsidera a historicidade das coisas. Aplainados em superfície desprovida de irregularidades, os vestígios de um passado são mobilizados para emprestar legitimidade à parafernália eletrônica e profusão de informações cuja aparente multiplicidade e interatividade pode esconder o vazio empanturrado de um consenso subentendido. Consenso que impõe uma certa memória presentificada no forte apelo à emoção e aos sentidos, ao mesmo tempo que apaga e esquece os traços e marcas das camadas contraditórias que se formam nos relatos e experiências que escapam ao passado pasteurizado a ser exposto na vitrine.


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