domingo, 15 de setembro de 2013

A antropologia no museu: entrevista com Benoît de L’Estoile

"A experiência do museu é a de se deslocar": entrevista com Benoît de L’Estoile
Realizada por : Eduardo Dimitrov, Ilana Seltzer Goldstein e Mariana Françozo, na Unicamp, em junho de 2011.  Publicada em PROA, publicação vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do IFCH-UNICAMP

Benoît de L’Estoile, antropólogo, é pesquisador do CNRS (Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux, Iris, Paris) e professor na École Normale Supérieure (Paris). Em Le goût des Autres: De l’Exposition coloniale aux Arts premiers (Flammarion, 2007 ; edição de bolso. 2010), ele explorou as metamorfoses do mundo dos “museus dos Outros”. Com Federico Neiburg e Lygia Sigaud, organizou Antropologia: imperios e Estados nacionais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002), e com Lygia Sigaud, Ocupações de terra e transformações sociais (Rio de Janeiro: FGV, 2006). Foi curador da exposição Nous sommes devenus des personnes. Nouveaux visages du Nordeste brésilien (Paris, 2003; Dijon, 2005). Em 2010-2011, recebeu uma bolsa de pesquisador visitante do CNPq, associado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 Um trecho de interesse para as atividades da disciplina Tipologia de Museus (2° semestre 2013)
[para ler a entrevista completa, aqui]

Proa: Qual a sua avaliação dos museus influenciados pelas teorias pós-coloniais e pós-modernas, como o National Museum of the American Indian (NMAI), em Washington, que procura envolver pessoas das sociedades ali representadas em debates e tomadas de decisões?
Benoît: Esse museu tem uma proposta forte. Antes, dentro do National Museum of Natural History, da Smithsonian, a exposição sobre os índios tinha a forma de um “museu dos Outros”. O National Museum of the American Indian, transformou-se em um “museu do Nós”. Lá, os povos indígenas podem dizer “aqui está a nossa visão de mundo, o nosso discurso”. Trata-se, antes de tudo, de um gesto político, afirmando a presença dos índios norte-americanos na capital do país, impedindo que sejam apagados pela história, e isso é muito significativo, em contraste com o passado. Em termos da exposição, a parte que eu acho mais impressionante é justamente a parte histórica, “Our peoples: giving voice to our histories”. Na entrada, você depara com o “muro de ouro” (instalação da artista Jolene Rickard): obras de arte em ouro dos povos pré-colombianos estão misturadas com as espadas, as barras de ouro e as moedas dos conquistadores, juntando acervos que, habitualmente, pertencem a tipos diferentes de museu. O impacto estético traduz o choque entre o mundo americano e o mundo europeu, representado pelo contraste dos metais, o ouro em forma de arte ou como suporte de valor econômico, e o aço como matéria-prima das armas. Um pouco mais longe, o muro das bíblias em várias línguas indígenas evoca a colonização religiosa e a indigenização do cristianismo, que passou a fazer parte das “culturas indígenas”; já as armas de fogo aludem ao aniquilamento físico dos povos nativos norte-americanos, mas, ao mesmo tempo, foram por eles apropriadas. Enfim, é uma maravilha como conseguiram tornar concreta a complexidade da história, lançando mão de recursos expositivos inovadores.
Achei interessante a proposta da “cocuradoria”, mas levanta várias questões. A princípio, a ideia é substituir o discurso tradicional vindo de cima e de fora, do museógrafo ou do antropólogo, pelo ponto de vista nativo. É uma transformação radical da proposta museográfica, agora assumida pelos próprios índigenas. Os cocuradores indígenas supostamente trazem uma voz “autêntica”, contudo não podemos esquecer que ela é igualmente construída: quando o cocurador é um xamã que também é professor de Antropologia da Universidade de Cuzco, será que ele fala como xamã, como antropólogo, ou como liderança indígena? Em outros casos, embora haja cocuradores indígenas, o resultado da exposição é bastante padronizado, tanto em termos visuais como no tocante ao discurso de inclusão. Mas a maior questão talvez seja quem é aquele “Nós”? Índios genéricos das Américas? Grupos específicos? O desafio da inclusão da “palavra indígena” no museu é definir quem são os (as) que falam, se e como vão falar no lugar dos outros. Será que todo mundo pensa a mesma coisa? Homens e mulheres têm a mesma visão? Velhos e jovens falariam do mesmo modo? E assim por diante. Enfim, você tenta solucionar antigos problemas dando voz aos indígenas, porém encontra novos: quem tem legitimidade para falar com a voz indígena? Quem vai escolher o “bom nativo”? Será que a polifonia no museu vai apagar a polifonia nos grupos? E como lidar com as censuras que podem advir do fato de não se querer expor para o resto do mundo certos aspectos julgados problemáticos?
Ocorrem também, nessas situações de cocuradoria, conflitos práticos e políticos. Um caso emblemático foi o da exposição African Voices, no National Museum of Natural History, em Washington, que gerou tensões sobre como apresentar a história da África. Alguns grupos queriam que a visão afrocentrista ordenasse a narrativa, criando conflito com os curadores do museu. Essas transformações levantam questões fascinantes.

Proa: Como estão, hoje, as relações entre antropologia e museologia e o que uma área de conhecimento pode oferecer à outra? Quais as especificidades da abordagem antropológica dos museus?
Benoît: Quando a antropologia nasceu, o museu era o lugar de onde se falava e onde se produzia conhecimento antropológico. Servia não apenas para divulgar os conhecimentos sobre os Outros, mas para produzi-los e ordená-los, num projeto enciclopédico[05]. O museu não podia ser um objeto de estudo para a antropologia, porque era o próprio locus da antropologia. O fato de a disciplina ter saído do museu e se afastado dele (ou ter sido expropriada dele) permitiu um olhar de fora, como um objeto de interesse, enquanto expressão material de certas propostas e ideia. O museu é a materialização de uma cosmologia, de um modo de olhar para o mundo. Para conseguir analisar como ele constrói o mundo, é preciso primeiro sair do museu. A antropologia, de fora do museu, toma-o como objeto de estudo, da mesma forma que faria com qualquer outro objeto. No meu caso, eu não tinha ligação nenhuma com o Musée du Quai Branly, nem com o Musée de l’Homme, e isso me deu liberdade para escrever meu livro.
Na realidade, a coisa é um pouco mais complexa: por um lado, há antropólogos dentro de museus; por outro, é claro que a antropologia e os museus compartilham certos princípios e evidências, por causa da origem comum. Mas, de forma geral, a proposta da antropologia dos museus é tentar criar distância em relação aos museus através de um olhar comparativo e histórico. Quando você visita um museu, pelo fato de ser uma experiência física e sensorial, ele se impõe a você como evidente. É difícil ser crítico no momento da visita, e ir além do “gosto ou não gosto”. Para tomar distância, é preciso comparar com outros museus, em outros lugares. E se perguntar: hoje é assim, mas como foi há trinta, cinqüenta, cem anos atrás, por exemplo? Quando a antropologia se distancia e olha o museu como algo que fala sobre nós, o que ela produz pode ser interessante, também, para os museólogos e para quem trabalha dentro do museu. Às vezes, eles apreciam esse olhar crítico, mais distante. Porque quem está dentro tem que resolver uma série de problemas urgentes relativos à iluminação, à proteção das obras, ao orçamento, etc. Dificilmente esse profissional tem condições de se desvencilhar da sua vivência cotidiana e da construção teórica que perpassa o museu.
Houve uma mesa-redonda na França, alguns anos atrás, sobre o tema: “Qual o papel dos antropólogos nos museus?”[06]. O Musée de l’Homme, em Paris, era o museu dos antropólogos: eles faziam a curadoria e eram responsáveis pela coleção. Já o Quai Branly, que herdou seu acervo, separou as coisas. Ensino e pesquisa constituem um setor específico do novo museu, uma espécie de reserva para os antropólogos. A curadoria é outro departamento e a diretoria outra instância, em que a experiência em administração pública é que conta. O fato é que, na França, a voz dos antropólogos tornou-se fraca ao longo do tempo. O Musée de l’Homme, nos anos 1930, era muito moderno, mas, desde então, pouco mudou. Portanto, surgiu a proposta de um museu “dos Outros”, como o Branly, em razão de os antropólogos não mostrarem interesse em propor novas maneiras de lidar com aquele acervo e por terem abandonado o estudo da “cultura material”.

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