quarta-feira, 28 de junho de 2023

A Criminalização da Capoeira na Primeira Metade do Século XIX

Universidade Federal de Minas Gerais - Escola de Ciências da Informação Graduação em Museologia


Disciplina: Metodologia da Pesquisa Histórica em Museus

Prof. Dr.: Luiz Henrique Garcia

Alunos: Ana Beatriz Fóscolo, Kelvin Martins, Lucas Thiago, Vitor de Souza


INTRODUÇÃO

A fim de tecer comentários que suscite em um debate sobre a criminalização da capoeira na primeira metade do século XIX, é essencial definirmos o conceito de capoeira neste período. A capoeira, tal como a conhecemos hoje, reconhecida como esporte e tradição nacional, com grupos organizados, cada qual com sua metodologia de treinamento e sistemas de graduação, é uma construção moderna que teve início na década de 30. Nesse período, houve um esforço estatal liderado pelo então presidente da República, Getúlio Vargas, para construir uma identidade nacional através do esporte. A capoeira passou por várias transformações identitárias ao longo de seu processo de organização e continua a evoluir até os dias atuais. É crucial compreender o contexto sociopolítico da época, que favoreceu essas transformações. Estudos mostram que, embora a comunidade da capoeira possa ser definida como um universo simbólico com relativa autonomia, houve influência do espírito político presente nas ideologias autoritárias do período de 1930 a 1945.(CUNHA, I. M. C. F. da; VIEIRA, L. R.; TAVARES, L. C. V.; SAMPAIO, T. M. V, 2014)

Desta forma, na primeira metade do século XIX, não se falava em "A" capoeira, mas sim em "O" capoeira ou capoeiragem, que era compreendida mais como uma característica de quem a praticava. Para uma melhor compreensão, podemos analisar trechos de jornais da época. Por exemplo, um anúncio que relatava a fuga de um escravizado no Jornal Diário do Rio de Janeiro de 1824: “[...] fugio hum muleque, de nome José, Nação Angolla [...]tinha sahido do Callabouço de apanhar 200 açoutes [...] elle, anda mesmo na Cidade, he muito capoeira.”

Outro trecho menciona a fuga de um escravizado da nação Cambinda, chamados João: “Fugio [...] estatura ordinária, reforçado: cara alegre, nariz afilado, tem os pés grossos, com dedos esparrados, era trabalhador de carroça, e muito dezordeiro, e capoeira[...]”

Um terceiro trecho denunciava a impunidade de crimes cometidos por capoeiras: “Negros capoeira que costumão exercer o seu bárabro valor [...] tem comettido varias desordens e assassinios [...]. É preciso que a Policia tenha mais alguma actividade, para prevenir semelhantes desgraças; em apalpar pretos, de quem se desconfia”

A partir desses três relatos, podemos inferir que a capoeira era associada a desordeiros, malandros, espertalhões e pessoas de grande força e destreza física. Para tal afirmação, observermos as recomendações racistas no último trecho destacado: "apalpando negros em quem se desconfia", isto é, aqueles que possuíam características de capoeira, vista sua prática como um crime por si só e que se estendeu até o meio do século XX. Uma ‘vadiagem a ser controlada’ por ser uma prática exclusivamente negra e escrava. A organicidade dos escravizados se aglomerarem

pelas ruas das vilas durante a noite ou em um encontro dos escravos de ganho pelas ruas durante o dia, erguiam olhares suspeitos pelo povo e, sobretudo, pela vigilância.

Como construção deste contexto, de acordo com AMORIM (2019),houveram determinações e decretos no Brasil que permitiam a aplicação de castigos corporais em praças públicas aos negros capoeiras. Via-se, naquela época, a prática da mesma como uma ameaça ou mera prática de vadiagem dos escravos, por vezes associando-os a atos criminosos ou de dissidência. Com esse efeito, em 1822, durante o governo de Dom Pedro I, decretou-se o castigo em açoites aos cativos que praticassem capoeiragem. Foram eliminadas as punições por açoites aos negros capoeiristas após a abolição da escravidão, mas persistiu-se ao fim do Século XIX, penas de “prisão cellular dous a seis mezes” em Minas Gerais, mas tais penas poderiam variar de província à província. A criminalização, no entanto, persistira até o meio do Século XX com as leis ‘anti-vadiagem’ iniciando-se no governo de Floriano Peixoto.

ANÁLISE DE IMAGENS: SIGNOS E SIGNIFICADOS DA CAPOEIRA

Negros Lutando. Brasils. Augustus Earle, Aquarela, 1822, 16.5 x 25.1 cm. Fonte:National Library of Austrália

Essa é uma gravura do viajante inglês, Augustus Reale, que se encontra na Austrália, intitulada “Negro lutando nos Brasis”. Há homens dois negros, o da direita está em posição de ataque, enquanto o outro parece se defender. É interessante observar que aquele que está atacando carrega uma bacia de latão modelada na mão direita,, dando indícios que se tratava de um escravo barbeiro-cirurgião visto que a bacia era utilizada aos fins de corte de barba e cabelo e extração de dentes Os cirurgiões-barbeiros eram normalmente encontrados nas ruas das cidades ou pelos cais de navios nas cidades costeiras. À esquerda, o guarda real de polícia chegando para impedir a capoeiragem. Antes da década de 1830, a capoeira não era considerada um crime, mas havia perseguição aos negros que se expressavam culturalmente em locais públicos (AMORIM, 2019).

É importante perceber que os donos de escravos permitiam e até estimulavam os escravos a serem capoeiras, visto ser um mecanismo de autodefesa eficiente para a época em casos de tentativas de asfaltos ou confiscos pelos guardas. Como exemplo, o Rio de Janeiro era perigoso na época, e a polícia interferia muito no espaço urbano, desenvolvendo uma disputa entre o poder senhorial (particular) e o poder do estado; o estado não aceitava a capoeira, mas só em 1850 é que realmente o estado consegue impor de fato a sua autoridade sobre ela.

BRIGGS, Frederico Guilherme. Negros que vão levar açoutes. Rio de Janeiro, RJ: Riviere e Briggs, entre 1832-36. 


Em comparação, essa segunda gravura retrata dois soldados da guarda imperial de polícia durante o período do Brasil Império. Leva-se dois escravos a serem açoitados pelo crime discriminado na placa em que carregam em seus ombros. Há uma referência sobre esse tipo de prática no Jornal O Espelho Diamantino de 1828 (RJ), alguém diz expressando revolta sobre a impunidade dos capoeiras: “Que alegrão para o povo, quando se vir [...] levando na testa o letreiro de [...] capoeira.” De acordo com (LÍBANO, 2020) eles seriam açoitados com 300 chibatadas no calabouço do morro do castelo.

Refletindo sobre o contexto histórico da mesma, o Rio de Janeiro era um verdadeiro labirinto de nações, onde se encontravam africanos vindos de diversas partes do continente. Até hoje, podemos encontrar no Rio de Janeiro um bairro chamado Pequena África, que era conhecido como Bairro do Valongo, sendo neste bairro que desembarcaram cerca de um milhão de africanos entre o final do século XVIII e o início do século XIX (GOMES, 2019). Apesar de enfrentarem uma pena severa de 300 chibatadas observemos que mesmo com uma punição tão brutal, a capoeira continuou a se desenvolver e crescer ao longo dos anos, tornando-se assim até os dias de hoje, uma prática de resistência, movimento de contracultura e de identidade racial.

Jogar Capoeira. Autoria: Rugendas. Fonte: Viagem Pitoresca através do Brasil- Litografia de Villeneuve, fig. Wattier. 4/18. (1835).

Em consonância a tais comparações, essa terceira imagem produzida pelo pintor Rugendas é conhecida como "Dança Capoeira", famosa por ilustrar diversos livros didáticos. Reconhecemos a importância desta imagem pela trajetória de Rugendas, o qual registrou a capoeira tanto no Rio de Janeiro quanto na Bahia, principais centros onde a capoeira se desenvolveu. A prática nasceu como uma atividade urbana praticada pelos escravos urbanos e no Rio de Janeiro é reconhecido como um dos principais centros difusores da capoeira.

Nesta ilustração, há dois indivíduos envolvidos em uma disputa. Em uma região de trânsito, podemos observar um africano usando o chapéu de um oficial, tocando um tambor. No Museu Histórico Nacional, há tambores semelhantes apreendidos em operações policiais que obedeciam ordens contra a lei de vadiagem, que nada mais era contra qualquer manifestação de cultura negra, assim como acontecia com as rodas de samba. Mais acima na imagem, alguém segura uma lança e sua presença indica que estamos no limite entre a brincadeira e a luta, clima que é presente nas rodas de capoeira contemporâneas. Atualmente, nas rodas de capoeira, há o chamado ‘jogo duro’, que é quando um dos oponentes resolve sair da brincadeira e partir para luta, forçando seu adversário a fazer o mesmo.

Na esquerda, vemos outro grupo batendo palmas e instigando os jogadores. Há dois grupos e um deles também portando facas. Essa tradição foi narrada por Câmara Cascudo, onde os capoeiras do Rio de Janeiro precisavam superar desafios para adquirir a posse da navalha e o uso do chapéu, como um rito de passagem para ascender na hierarquia das maltas. (MAO, 2023)

No alpendre da casa grande, dois brancos observam a capoeira. Nesse momento, a capoeira representada não era uma luta real, mas sim uma versão estilizada, um jogo. A capoeira tinha a

capacidade de se transformar facilmente adaptando-se de luta para brincadeira. Já nessa época a luta era bastante desenvolvida. Os africanos tentavam convencer a polícia de que não deveriam ser presos já que a capoeira não era uma luta real, mas sim uma brincadeira. Essa noção é conhecida na Bahia como vadiação. (LÍBANO, 2020). Há ainda hoje nas músicas de capoeira, um toque de berimbau chamado de “Cavalaria” em que nos relatos dos mestres de capoeira, utilizava

se como forma de alertar os capoeiras sobre a chegada da polícia. A ideia de que há códigos nas rodas de capoeira que só podem ser percebidos por quem a vive é notável ainda atualmente.

Durante o projeto estatal de criação de uma imagem nacional no Brasil citado anteriormente, assim como na década de 70 durante a pior fase da ditadura -, houve um período em que a capoeira vivenciou um crescimento significativo. Neste contexto surgiram grupos como o Muzenza, o Cordão de Ouro e posteriormente, o grupo Abadá, que desempenharam um papel fundamental na disseminação dessa arte pelo mundo conquistando a presença em mais de 100 países, contando com cerca de 90 mil alunos pelo mundo. Os regimes autoritários utilizaram a capoeira como símbolo para promover seus projetos nacionalistas, mas procuraram esvaziá-la de suas raízes africanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criminalização da capoeira na primeira metade do século XIX revela uma complexa história marcada pela discriminação racial e pelo controle social exercido pelas autoridades. No entanto, mesmo diante dessas repressões, a capoeira continuou a se desenvolver e crescer ao longo dos anos e se transformou em uma prática cultural com características próprias. Atravessando por transformações identitárias e resistindo às tentativas de esvaziamento de suas raízes africanas, ainda desenvolve-se um esforço de resgate da ancestralidade e da essência cultural da capoeira, buscando reconhecê-la como patrimônio. Contudo, desafios ainda devem ser superados em um Brasil que ainda perpetua o racismo através de diversos mecanismos do Estado: intervenções policiais e supressão de manifestações periféricas como vemos rotineiramente nos noticiários, seja por matérias que mostram esta realidade ou pelo típico sensacionalismo que mostra essas repressões como espetáculos contra a criminalidade, como notas-e facilmente em periódicos da primeira metade do século XIX. E mesmo que existam estes problemas, a Capoeira felizmente, rompe barreiras mostrando-se como uma atividade respeitada culturalmente.

REFERÊNCIAS

CUNHA, I. M. C. F. da; VIEIRA, L. R.; TAVARES, L. C. V.; SAMPAIO, T. M. V. Capoeira: a memória social construída por meio do corpo. Porto Alegre: [s.n.], 2014

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 11 maio 2023..

A AURORA FLUMINENSE Jornal Político e Litterario. Rio de Janeiro, 1829. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 11 maio 2023.

AMORIM, Thiago Rodrigues. Registros Pictóricos: Refletindo sobre a Capoeira na Primeira Metade do Século XIX. Revista do Colóquio, N. 16, junho de 2019.

SOARES, Carlos Eugenio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2ªedição – Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2004

EARLE, Augustus. Negros Lutando. Brasils, 1822, National Library of Austrália. Disponível em: https://nla.gov.au/nla.obj-134509842/view. Acesso em: 11 maio 2023.

BRIGGS, Frederico Guilherme. Negros que vão levar açoutes. Rio de Janeiro,1832-36. Disponível em: https://acervobndigital.bn.gov.br/sophia/index.html. Acesso de 11 Maio de 2023.

MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS. Ofícios Ambulantes Barbeiro-Dentista [Painel informativo], 2023. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

RUGENDAS. Viagem Pitoresca através do Brasil: Jogar Capoeira. - Litografia, 1835. Disponível em: http://dami.museuimperial.museus.gov.br/handle/acervo/9665. Acesso em: 11 maio 2023.

MOVIMENTO INOVAÇÃO NA EDUCAÇÃO. Escola Abadá Capoeira. Disponível em: https://movinovacaonaeducacao.org.br/iniciativas-inovadoras/escola-abada-capoeira/. Acesso em: 15 maio 2023

GRUPO MUZENZA. Capoeira History. Disponível em: https://capoeirahistory.com/pt br/geral/grupo-muzenza/. Acesso em: 15 maio 2023.

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