Acabo de ler o romance O pintassilgo, da escritora estadunidense Donna Tartt. Sem a pretensão de fazer uma resenha completa [aqui uma cópia do texto de orelha], quero recomendar fortemente a leitura e explorar ainda de forma bem inicial esse tema dos museus na literatura. O romance, apesar de não deixar de arriscar pequenas inovações aqui e ali ( como emular a mensagem de texto por celular, usando tipografia destacada ) é herdeiro direto da tradição dos grandes romances dezenovistas, sobretudo por sua tonalidade dickensiana. As 700 e algumas páginas fluem deliciosamente, seja na narrativa em primeira pessoa do protagonista, seja nos diálogos vivos entre personagens bem construídos e bastante carismáticos. Me impressiona isso virar assunto de resenhas e matérias, já li livros menores que eram bem mais árduos de percorrer (e não piores por isso, claro). Além de escrever bem, fica claro que Tartt tem uma excelente formação - e certamente, como ocorre com os romancistas best sellers de atualmente, tem uma grande equipe trabalhando e pesquisando para ela (como fica claro pelos agradecimentos finais). Obviamente isso não diminui em nada seu mérito para dar corpo a esse estofo todo, com palavras de tirar o fôlego.
Luís Miguel Queirós fez um boa síntese para o Público, explicando a partir do título:
Já a pintura de Fabritius está no epicentro da intrincada intriga do romance The Goldfinch, de Donna Tartt, que depois de dois best-sellers, A História Secreta (1992) e O Pequeno Amigo (2002) – ambos publicados em Portugal pela D. Quixote –, esteve 11 anos a escrever este seu terceiro livro. Theo, o protagonista, é um adolescente que vê a sua mãe morrer, vítima de um atentado terrorista no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, onde esta o levara a ver uma exposição de obras-primas da pintura holandesa. Num momento de pânico – e por razões que não vêm ao caso –, Theo rouba O Pintassilgo de Fabritius, que era a pintura favorita da sua mãe.
Como diz a orelha : O pintassilgo é uma hipnotizante história de perda, obsessão e
sobrevivência, um triunfo da prosa contemporânea que explora com rara
sensibilidade as cruéis maquinações do destino. O jogo entre a morte, o desfazer do tempo, e as possibilidades de busca de transcendência, mesmo que inúteis - pois, diz Tartt pela voz de Theo, "a vida é catástrofe" - estão no cerne do romance, e também nas nossas preocupações quando tentamos entender porque guardamos certos objetos e tentamos enfrentar a irrefreável voragem do tempo. Demandaria um ensaio muito mais bem acabado destrinchar as profundas e variadas inter-relações traçadas ao longo do livro entre os museus, a experiência de vida dos personagens, o fio da narrativa e as reflexões conceituais que ensejam. A autora nos deixa, ao final, preciosos pensamentos que tangem as relações entre arte, vida, colecionismo, memória, cultura. Uma parte das suas observações sobre o quadro de Fabritius são aquelas que certamente diversos historiadores da arte já fizeram, mas, provavelmente, expressas de uma forma mais descompromissada com maneirismos dos textos acadêmicos típicos. Da boca de seu sócio, mentor e pai adotivo, por assim dizer, ele ouve que "se uma pintura realmente afeta e muda sua maneira de ver, de pensar, de sentir, você não pensa 'ah, eu amo essa pintura porque ela é universal'. 'Eu amo essa pintura porque ela fala com toda a humanidade'. Não é por isso que você ama uma obra de arte. É um sussurro secreto vindo de um beco. Psst, você. Ei, garoto. Sim, você."
A matéria do Público versa justamente sobre o impacto desse e de outro best-seller baseado em obra de sua coleção (Moça com brinco de pérola) no aumento da frequência de público no Museu Mauritshuis [conheça], em Haia, Holanda [vale ler toda]. O assédio às obras motiva alterações inclusive na expografia, como comenta Queirós no trecho:
E os responsáveis do museu de Haia parecem partilhar a sua convicção, uma vez que já mudaram o seu Fabritius (o único que possuem) da parede lateral de uma escadaria, onde sempre estivera, para um lugar de honra na sala Jan Steen, onde passará a figurar isolado, num generoso espaço entre duas janelas.
Tal fenômeno guarda um nó interessante a ser desdado, que implica em buscar tanto a compreensão de como, nesse tempo que privilegia o texto curto, a assimilação rápida, um romance como O pintassilgo vira campeão de vendas, e, consequentemente, eleva o público de um museu. O livro, de certa forma - e claro, sem escapar da ambígua condição produzida por tomar corpo no contexto de produção, circulação e consumo em escala massiva - realiza assim o próprio leitmotiv que permeia suas páginas, o de que a arte - ou toda forma humana de impingir uma imortalidade, por mais ameaçada que seja - encontra um modo de perpetuar-se, até quando parece improvável:
"Ela existe; e continua existindo. E eu acrescento meu próprio amor à história das pessoas que amaram coisas belas, e cuidaram delas, e tentaram preservá-las e salvá-las enquanto as passavam literalmente de mão em mão, cantando de forma brilhante pelos destroços do tempo para a próxima geração de amantes, e a próxima".