sábado, 26 de agosto de 2017

CONTRIBUIÇÕES DO III CONGRESSO MINEIRO DE PSIQUIATRIA PARA A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM MINAS GERAIS [Metodologia da Pesquisa Histórica em Museus 2017]

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
ESCOLA DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
CURSO: Museologia
DEPARTAMENTO: Teoria e Gestão da Informação
DISCIPLINA: Metodologia da pesquisa histórica em museus                         [6°p. museologia]
PROFESSOR: Luiz Henrique Assis Garcia
ALUNOS: André Luiz Lara Lima
                Daniel Xavier Henriques
                Igor Cândido Costa
                Luana do Carmo Pirajá Ferraz Santos
                Maria de Lourdes Oliveira e Silva

                Soraia Oliveira de Vasconcelos Botelho

O III Congresso Mineiro de Psiquiatria é considerado um momento importante para a Reforma Psiquiátrica em Minas Gerais e a vocalização de uma “mobilização iniciada no final dos anos 60 pelos psiquiatras da ‘turma do [hospital] Galba’” (GOULART, 2015). Ocorrido entre os dias 15 e 21 de novembro de 1979 na Associação Mineira de Psiquiatria (AMP), em Belo Horizonte, sob a organização do Centro de Estudos Galba Velloso e a coordenação do médico psiquiatra Cézar Rodrigues Campos, esse foi um evento que, segundo Silva & Goulart (2011), promoveu um “conjunto de iniciativas, ações e produtos que foram, se não determinantes, no mínimo, imprescindíveis para a consolidação de uma produção crítica em relação às instituições psiquiátricas à Reforma”.
Diferentemente, dos encontros anteriores, de 1970 e 1971, que já apresentavam um clima de crítica contra a degradante situação da assistência psiquiátrica no Estado, o III Congresso apresentou um potencial instituinte na política de saúde mental mineira e brasileira. Para além de apresentar o problema do ponto de vista técnico (médico), o congresso aproveitou o processo de abertura política e o fim da censura à imprensa, para dar enfoque político-social nas propostas de um novo modelo asilar e também poder contar com a participação de jornalistas e sindicatos que pudessem se mobilizar junto aos profissionais de saúde para a construção de respostas incisivas para a Reforma Psiquiátrica (SILVA & GOULART, 2011).
Assim, o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, que foi uma grande produção política em prol da ruptura do ciclo vicioso e desumano do tratamento psiquiátrico vigente, reuniu um número expressivo de participantes. Foram mais de 600 pessoas, entre médicos, psiquiatras, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e estudantes, além de familiares dos internos e a imprensa, reunidas em torno dos seguintes temas: “Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais”, “Condições de Trabalho dos Profissionais em Saúde Mental”, “Espaço da Psiquiatria” e “Alternativas de Trabalho em Saúde mental”.
Mantendo essa perspectiva de descontinuidade da lógica manicomial, o congresso apresentou ainda dois outros momentos que marcariam positivamente o cenário nacional de desinstitucionalização da loucura. O lançamento do curta-metragem “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton, e a participação de Franco Basaglia, precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano, e de Robert Castel, sociólogo francês. Segundo Silva & Goulart (2011), o documentário e a vinda desses dois nomes internacionais foi planejada “por grupos que já se mobilizavam com a causa manicomial, sendo uma importante jogada política na época”, causando desconforto em muitos dirigentes públicos, como o então Secretário Adjunto da Saúde, José Expedito Janotti, que “declarou que a mídia visual (televisiva) estaria impedida de entrar nos hospitais psiquiátricos”. Esse embate com a Secretaria de Saúde acabou criando maior expectativa nos participantes do III Congresso, que cobraram soluções dos órgãos públicos. No entanto, estes mantiveram uma atitude defensiva, criando uma atmosfera de tensão em um evento que se configurava cada vez mais político.
O III Congresso Mineiro de Psiquiatria, após sete dias de manifestações, terminou com as autoridades governamentais fazendo promessas para mudar os rumos da assistência psiquiátrica e com os congressistas ratificando “o seu repúdio à política de saúde mental, pública e privada, existente em todo o país” (SILVA & GOULART, 2011). Ainda segundo esses autores, um documento foi produzido e encaminhado ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), no qual estava acordado: a criação de alternativas terapêuticas com a participação dos sindicatos e demais representantes da classe; o fortalecimento do movimento nacional de trabalhadores de saúde mental; a formulação de novas políticas de assistência psiquiátrica; e a repulsa à mercantilização e privatização da medicina. Ainda foi decidido pelo “compromisso permanente pela humanização da psiquiatria, a partir da extinção dos hospitais e sua substituição pelo tratamento ambulatorial” (SILVA & GOULART, 2011). Deliberações essas que marcaram a luta antimanicomial na década de 1980 e trouxeram importantes conquistas, como o “Plano de Reorientação da Assistência Psiquiátrica”, de 1982, elaborado pelo Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP) e implementado pelo INAMPS.


A Reforma Psiquiátrica

A Reforma Psiquiátrica foi um movimento que tomou forma em meados da década de 1970 e se baseou, principalmente, no “questionamento incisivo das políticas públicas de saúde mental e do modelo assistencial centrado nos hospitais psiquiátricos e em estratégias de exclusão” (GOULART & DURÕES, 2010). Em um período que, tanto no cenário brasileiro como mundial, cresciam as críticas às redes assistenciais que previam internações autoritárias e arbitrárias e a total reclusão do doente mental, a Reforma Psiquiátrica no Brasil, segundo Goulart & Durões (2010), ganhou força com a Reforma Sanitária e a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), configurando-se em um “conjunto de iniciativas de cunho político, social, legislativo e cultural” que visavam à desconstrução dos espaços asilares e a efetivação de modelos alternativos de tratamento.
As críticas ao modelo assistencial tradicional vigente explodiram em Minas Gerais e no Brasil. E os horrores do tratamento desumanizado sofrido pelos internos nos hospitais psiquiátricos ganharam repercussão na mídia, criando-se “as condições de mobilização necessárias para o sucesso de duas outras iniciativas mineiras: o III Congresso Mineiro de Psiquiatria e o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton” (GOULART, 2015). Mas o protagonismo de Minas Gerais para a Reforma Psiquiátrica foi além desses eventos. Dentro do Instituto Raul Soares (IRS), primeiro hospital psiquiátrico público de Belo Horizonte, “ocorreram importantes debates, embates e iniciativas que informam sobre os rumos e as contradições do processo de construção da política de saúde mental brasileira” (GOULART & DURÕES, 2010). Conforme esses autores, o processo mineiro de reforma culminou em uma nova legislação, em 1989, a Lei Paulo Delgado, que só foi possível devido ao contexto histórico-político vivido pelo país de declínio da ditadura militar.
No entanto, apesar das conquistas legislativas, o processo de desinstitucionalização sempre foi complexo. Até o ano de 2001 vigorou no Brasil o Decreto nº 24.559, de 1934, que dava respaldo a uma rede assistencial que se apoiava “no uso indiscriminado de psicofármacos e no isolamento dos doentes mentais, sem projeto clínico ou terapêutico real” (GOULART, 2015). E afirmando Goulart & Durões (2010), a Reforma Psiquiatra sempre marcada por descontinuidades e retrocessos. Deste a década de 1990 esteve em tramitação no Congresso um Projeto de reforma do sistema psiquiátrico, a Lei nº 10.216, que teve como base a Lei Paulo Delgado e somente foi aprovado em 2001. Essa lei substituiu o Decreto anterior e tinha como intento desmantelar o aparato asilar baseado em internações involuntárias (PINTO & FERREIRA, 2010).

Cezar Rodrigues Campos e a Turma do Galba


Foto de Cézar Rodrigues Campos. Disponível em: <goo.gl/ygyYwq>. Acesso em: 17 jun. 2017. 

Cézar Rodrigues Campos (1940-1999, São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais) foi um médico e psiquiatra, considerado um militante na luta antimanicomial (SILVA et al., 2011). Ele foi uma importante figura no processo de Reforma Psiquiátrica Mineira com um percurso profissional que “permite vislumbrar toda uma lógica perversa de funcionamento institucional e as tentativas de sua superação ou promoção de mudanças na política de saúde mental mineira” (SILVA & GOULART, 2011). Campos fez parte da “turma do Galba”, como ficou conhecido o grupo de médicos psiquiatras residentes do Hospital Galba Velloso (HGV) e integrantes do núcleo de pesquisas sobre psicotrópicos de referência, criado na década de 1960. Esses profissionais foram militantes na Reforma Psiquiátrica Mineira, e, como integrante, Campos pode criar, em 1970, a Associação Mineira de Psiquiatria (AMP), oriunda do antigo Departamento de Psiquiatria da Associação Médica de Minas Gerais, bem como organizar na década de 1970 o I, II e III Congresso Mineiro de Psiquiatria (SILVA et al., 2011; GOULART, 2014; GOULART, 2015).



Março de 1970 – Simpósio Nacional sobre Depressão. Parte da “turma do Galba”. Da esquerda para a direita: Cristina e Rodrigo Teixeira de Salles, Marcio Sampaio, Roberto Rangel, Eunice Rangel, José Ronaldo Procópio, Antônio Leite Rangel, Jorge Paprocki, Maurício Sartori, Maria Muniz Passos (Lia), Delcir Antonio da Costa e Antônio Carlos Corrêa. Disponível em: <goo.gl/YA2au2>. Acesso em: 17 jun. 2017.

Nas décadas de 1970 e 1980, Campos também trabalhou como preceptor da Residência em Psiquiatria do Instituto Raul Soares, se destacando como professor na disciplina Psicologia Social (SILVA et al., 2011). Ele ainda foi, entre 1986 e 1987, superintendente da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e, até 1993, Coordenador de Saúde Mental da Fundação. Em sua biografia ainda consta, participação como ativista no Movimento de Luta Antimanicomial e na constituição do Fórum Mineiro de Saúde Mental, em 1987, bem como Secretário de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte, de 1993 a 1996, quando implantou os primeiros serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos de Minas Gerais e elaborou a Lei Estadual 11.802 (Lei Carlão), de 1995, que dispõe sobre a promoção de saúde e a reintegração social do portador de sofrimento mental.

Franco Basaglia e a Psiquiatria Democrática


Foto de Franco Basaglia. Disponível em: <goo.gl/59vpUa>. Acesso em: 17 jun. 2017.

Franco Basaglia foi um médico e psiquiatra, nascido no ano de 1924 em Veneza, Itália, e falecido em 1980. Foi o precursor da reforma psiquiátrica italiana e importante liderança na luta sócio-política de desinstitucionalização da loucura, um processo que visava a “desmontagem e a desconstrução do aparato prático-teórico-discursivo da psiquiatria” e que previa “o resgate de cidadania do doente mental” (GOULART, 2015). Basaglia e sua equipe estiveram à frente da luta antimanicomial na Itália, iniciada ainda na década de 1960 e denominada de Psiquiatria Democrática a partir de 1973. Eles iniciaram importantes mudanças na assistência psiquiátrica italiana tendo como experiência os hospitais psiquiátricos de Gorizia e Trieste, onde realizaram críticas teóricas e práticas à psiquiatria e implementaram novas formas de tratamento para a loucura (OLIVEIRA, 2011). O modelo basagliano buscava uma inversão do saber psiquiátrico da época, deixando a doença de ser colocada em evidência, para dar foco no sujeito e devolver ao portador de sofrimento mental a sua liberdade e recuperar a sua dignidade e cidadania (OLIVEIRA, 2011; PINTO & FERREIRA, 2010; FERREIRA, 2012).
Franco Basaglia esteve no Brasil pela primeira vez em 1978, mesmo ano que ocorreu na Itália a aprovação da Lei nº 180 (Lei Basaglia) para participar do “I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições”, que ocorrei no Rio de Janeiro. Em 1979, retornou mais duas vezes, “para a realização de conferências e visitas aos manicômios no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte” (OLIVEIRA, 2011). Com os hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte e Barbacena, Basaglia ficou horrorizado com a situação, chamou-os de “campos de concentração” e “casas de tortura”. Nesse mesmo ano, participa na capital do III Congresso Mineiro de Psiquiatria (OLIVEIRA, 2011). Segundo Goulart (2015), a sua participação nesse evento foi fortuita para a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Para Oliveira (2011), a vinda do médico “dividiu nosso processo de reforma em antes e pós”, já que até aquele momento as discussões no Brasil tinham inspiração nas psiquiatrias norte-americana e francesa.



Documentário “Em nome da Razão”



Referências Bibliográficas

FERREIRA, Walter. Reforma psiquiátrica e atenção psicossocial: contextualização sócio histórica, desafios e perspectivas. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.4, n.9, p.52-71, 2012.

GOULART, Maria Stella Brandão. A política de saúde mental mineira: rumo à consolidação. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, v. 8, p. 194-213, 2015. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v8nspe/04.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2017.

GOULART, Maria Stella Brandão. Comunidades terapêuticas: conceito e prática de uma experiência dos anos sessenta. Revista de Psicologia, v. 5 - n. 2, p. 53-69, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/1476>. Acesso em: 13 jun. 2017.

GOULART, Maria Stella Brandão; DURÕES, Flávio. A reforma e os hospitais psiquiátricos: histórias da desinstitucionalização. Psicologia & Sociedade; 22 (1): 112-120, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n1/v22n1a14.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2017.

GOULART, Maria Stela Brandão. Em nome da razão: quando a arte faz história. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum, p.36-41, 2010.

OLIVEIRA, Carla Luiza. O pensamento de Franco Basaglia na área da Saúde Mental. In: 16º Encontro Nacional ABRAPSO, 2011, Recife. Anais... Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2011. Disponível em: <goo.gl/Kh3EJ8>. Acesso em: 12 jun. 2017.

PINTO, Alessandra Teixeira Marques; FERREIRA, Arthur Arruda Leal. Problematizando a reforma psiquiátrica brasileira: a genealogia da Reabilitação psicossocial. Psicologia em Estudo, v. 15, n. 1, p. 27-34, jan./mar. 2010.

SILVA, Diego Patrick da; ABREU, Marcela Alves de; DIAS, Hernani L. Chevreux Oliveira Coelho. Cezar Rodrigues Campos: de psiquiatra a militante da reforma. In: I Encontro de Pesquisadores em História da Saúde Mental, 2011, Florianópolis. Anais... Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2011. Disponível em: <http://www.encontrohistoriasm.ufsc.br/files/2011/09/revista.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2017.

SILVA, Diego Patrick da; GOULART, Maria Stella Brandão. A Reforma Psiquiátrica mineira e Cezar Rodrigues Campos: uma história a ser desvelada. In: 16º Encontro Nacional ABRAPSO, 2011, Recife. Anais... Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2011. Disponível em: <goo.gl/fyw5yJ>. Acesso em: 12 jun. 2017.

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