quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Acervos públicos, sentidos do patrimônio e interpretação da História

A notícia de que o atual governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB), mandou retirar do gabinete de governo o quadro "Alegoria da morte de Estácio de Sá" (Antônio Parreiras, 1911), alegando que a mesma traz má sorte ou está "carregada" (palavras que teriam sido ditas pelo músico Jorge Ben Jor), produz espanto e uma série de inquietações. Antes de tudo,  assombra um gesto público dessa natureza, da parte de um político ocupando uma cadeira importante, que intenta criar algum tipo de distração ante problemas de gestão e finanças do estado que governa, apelando para esse tipo de interpelação pela irracionalidade, superstição. Ao mesmo tempo, tal gesto absolutamente criticável faz pensar também sobre os diferentes sentidos do patrimônio e as possíveis interpretações da História das quais participam. Retrato alegórico da empreitada colonial, com toda sua violência e imposição de modelo civilizacional, a pintura, figurava no gabinete do governador como elemento integrado à construção simbólica de identidade, inicialmente do Estado-Nação, uma vez que encomendada pelo então Prefeito do o Rio de Janeiro Inocêncio Serzedelo Corrêa no tempo em que a cidade era a Capital Federal. Nesse sentido é como o atestado de que o embate entre "civilização" e "barbárie" teve nos colonizadores os vencedores, dos quais o moderno estado brasileiro se colocava como continuador. Estácio de Sá, desse modo, apresenta-se como mártir da conformação de um Estado Nacional do qual não teve em vida a menor ciência. Posteriormente podemos considerar que a obra foi ressignificada para compor a narrativa iconográfica que constrói a identidade do Rio como estado sem deixar de afirmar sua centralidade para a nação brasileira. Mas, em algum momento, surge a dúvida:  que sentidos alegorias como essa, que demandam uma atitude contemplativa e conhecimento de certos códigos culturais, podem ganhar, nos tempos em que o oculocentrismo combinou-se à circulação acelerada de imagens no espaço público, nas múltiplas mídias e nas redes internéticas? Quão público é o gabinete do governador - o que implica perguntar - quem ultimamente olhava esse quadro?
O deslocamento da pintura - indiferentemente da motivação aparentemente irracionalista ou calcada numa pueril tentativa do governador de angariar a simpatia do eleitorado supersticioso que ele acredita representar, ou eventualmente de desviar o debate público no momento em que se questiona justamente sua capacidade de governar - acaba por paradoxalmente lançar a mesma na rede e nas mídias, talvez reacendendo um potencial de ressonância que estava adormecido enquanto estava na parede enquanto cumpria uma função residual se comparada à que exerceu nos tempos em que certos artefatos significavam muito nesse tipo de espaço através do qual se narrava uma certa história e se afirmava uma dada forma de poder. Se por um lado um motivo patético traz o quadro à baila, por outro às vezes só assim o que esquecido se coloca novamente no horizonte de nossas atenções.
Hoje nossa interpretação da colonização é bastante diversa daquela do início do século XX, e por aí podemos tomar certamente "Alegoria da morte de Estácio de Sá" desde um ângulo crítico que revela a lógica de violência e imposição, as contradições e assimetrias nas quais se ergueu a Colônia, e as implicações disso na formação do território e da nação brasileira nos séculos seguintes. A pintura portanto pode representar um testemunho relevante dessa história, e ao mesmo tempo instigar reflexões sobre temas e tensões distintivas e intestinas de nossa sociedade. Se o governador a retira da parede e esconde numa sala ainda menos frequentada do palácio de governo, parece, sintomaticamente, um gesto produtor de amnésia. Se decidir transferi-lo a algum museu, acena a possibilidade de torná-lo acessível a um público maior. Nesse último caso, me coloco favorável, desde que seja feitas a pesquisa e comunicação museológica condizentes para que a trajetória do quadro seja considerada elemento chave para pensar seu sentido contemporâneo.
  






6 comentários:

  1. Adorei o site. Bela recomendação Thais Diaz

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  2. Adorei o site. Bela recomendação Thais Diaz

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  3. Parece-me uma tentativa de retirar a obra de um gabinete do qual provavelmente (obviamente) não pertence. De fato é necessária encaminha-la para uma instituição disposta a utiliza-la em um contexto bem estudado.

    Ótimo levantamento. Indicação da Lucília.

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  4. Acredito que o ocorrido em questão abriu uma grande oportunidade para se pensar não só a respeito da obra em questão, mas como também em outras obras que se encontram dispersas. As quais poderiam se muito melhor utilizadas em um contexto adequado ao invés de estarem sendo usadas como adornos.

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    1. Concordo plenamente. Mas ao mesmo tempo pode haver alguns casos em que seja legítimo deslocar a obra, desde que isso seja feito com fundamento e seja corretamente documentado.

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