segunda-feira, 18 de julho de 2022

ESTUDO DA HISTÓRIA CULTURAL DA REPRESENTATIVIDADE GLS/LGBTQIA+ NO FIM DA DÉCADA DE 70, NO BRASIL, A PARTIR DA EDIÇÃO EXPERIMENTAL (nº 0) DO JORNAL IMPRESSO LAMPIÃO DA ESQUINA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS                                       05/07/2022

ESCOLA DE CIÊNCIAS DA INFORMAÇÃO

METODOLOGIA DE PESQUISA HISTÓRICA EM MUSEUS

PROF. LUIZ HENRIQUE GARCIA

ALUNO: VITOR GOMES DOS SANTOS

 

ESTUDO DA HISTÓRIA CULTURAL DA REPRESENTATIVIDADE GLS/LGBTQIA+ NO FIM DA DÉCADA DE 70, NO BRASIL, A PARTIR DA EDIÇÃO EXPERIMENTAL (nº 0) DO JORNAL IMPRESSO LAMPIÃO DA ESQUINA 

Ao fim da década de 70, em meio a ditadura militar no Brasil, mas já na fase de abertura política, Winston Leyland, editor da Gay Sunshine (revista voltada para o público homossexual de São Francisco, Califórnia) se reunia com mais onze militantes intelectuais que eram autodeclarados homossexuais (HEEREN, 2011, p.47) (LAMPIÃO, 2016). Segundo Agnaldo Silva, tudo começou quando Winston Leyland, da Gay Sunshine Press, esteve no Brasil coletando material para uma antologia de autores homossexuais latino-americanos. (LAMPIAO, 1978, p.5). Em nenhuma fonte consultada foi possível compreender quantos foram, ou em qual deles surgiu a ideia de formar um corpo editorial, com essas onze pessoas, mas é distinguível ter havido mais de um encontro, sendo sediados tanto no Rio de Janeiro, como em São Paulo, e também que em uma dessa reuniões se teve a ideia de criar um jornal, brasileiro, que compreendesse a vida social e as ambições civis do segmento homossexual da população, assim como suas tramas com as demais minorias (HEEREN, 2011, p.47) (LAMPIÃO, 2016) (LAMPIÃO, 1978, p. 2), chegando a abordar até mesmo a questão dos direitos dos animais, afirmando que esta conquista tornava esse grupo, a mais exótica das minorias:

“E LAMPIÃO reafirma aqui seu conceito de minoria: é um grupo sobre o qual a sociedade repressiva mantém seus tacões, mesmo que ele não seja minoritário, como as mulheres (...).” (LAMPIÃO, 1978, p. 11)

 Mais tarde, esse start foi classificado como compromisso histórico pela própria imprensa alternativa. Assim, foi criado Lampião da Esquina e ficou decidido que o seu Conselho Editorial fosse formado por: Adão Costa, Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Darcy Penteado, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, Jean-Claude Bernadet, João Antônio Mascarenhas, João Silvério Trevisan e Peter Fry (HEEREN, 2011, p.47). É importante ressaltar que foram enviados diversos convites a mulheres para fazer parte do corpo editorial, mas nenhuma se pronunciou (LAMPIÃO, 1978, p.4). Encarregados de traçar e manter a linha editorial do periódico, lançaram primeiramente uma edição experimental, de número 0 - lançada em abril de 1978, com a mensagem “circulação restrita” em sua capa – que traz a nota editorial “Saindo do Gueto” na página de abertura, deixando claro sua postura e seu lugar de incursão. 

01 - Cabeçalho da edição experimental - Nº 0 - 
jornal Lampião da esquina

“Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa liberalização do quadro nacional em ano eleitoral, a imprensa notícia promessas de um Executivo menos rígido, fala-se na criação de novos partidos, de anistia, de uma investigação das alternativas propostas faz até com que se fareje uma “abertura do discurso político brasileiro”.” (...) “É preciso dizer não ao gueto e, em consequência sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo o qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual como uma espécie de maldição (...).” “(...) Falando da discriminação, do medo, dos interditos ou do silêncio, vamos também soltar a fala da sexualidade no que ela tem de positivo e criador.” (LAMPIÃO, 1978, p.2).

Havia interesse de se estudar, inicialmente, a representação do homossexual através das matérias do jornal, ao longo de sua história, em paralelo com o contexto social, político, da época, que o jornal buscava embarcar. Entretanto, por se tratar de um jornal subversivo, político - de militância, voltado para mudar as estruturas da linguagem (dos fatos) amplamente associada a representação do homossexual brasileiro - mostra-se extremamente complexo em suas relações e, até mesmo, denso em seu conteúdo. Assim, geralmente as matérias surgem como indícios de diversos aspectos do status quo que eram impedimentos para o trabalho da equipe editorial, ou mesmo, enquanto resistências concernentes à conquista dos direitos humanos e da liberdade de expressão deste segmento da população, nos trazendo profícuas análises e infinitos caminhos possíveis de serem percorridos. Dado a fertilidade do material, o estudo resolveu restringir sua abordagem ao momento da incursão inicial do jornal Lampião da esquina, sua edição de lançamento. Esta autoproclamada “edição experimental”, nos interessa tanto, justamente por condensar esta tal densidade de conteúdo, aflorando perceptivelmente suas complexidades. Como por exemplo, quando uma carta selecionada, intitulada de Apelo ao jovem guei, levemente embasada em argumentos teológicos, afirma que “muitos (homossexuais) adotam habitualmente um comportamento artificial em consequência de discriminações mais ou menos veladas a que estão sujeitos.” (LAMPIÃO, 1978, p.15). Tal visão encontra eco constante no artigo “Qual é a da nossa imprensa?”, onde Frederico Jorge Dantas, questiona o momento atual e a inserção de uma imprensa homossexual, falando de sua dificuldade com o boletim EROS, onde encontrou “barreiras praticamente intransponíveis, quase todas erguidas pelas pessoas a quem ele dirigia o boletim” (LAMPIÃO, 1978, p.5):

                                                                   “Repressões sociais que nos são impostas pelo grupo majoritário onde o machista credenciado desrespeita a própria regra das liberdades individuais.” (...). (...)  “Reflexo exato da corrupção moral em que se encontra envolvida a homossexualidade, vítima dessa discriminação esmagadora, a que continua sendo imposta pelo estilo machista.” (...) “Dolorosos processos de autocondenação destroem centenas de homofilios incapazes de enquadrar dentro de uma definição social estável. Esta insegurança acaba originando comportamentos agressivos e em alguns casos, contrário ao bem estar social do nosso próprio grupo.

E sendo grave, afirma, “reconheço ser a bicha atual um estágio necessário para se atingir um tipo ideal de homossexual conscientizado de sua própria realidade sexual.” Chega finalmente a admitir “E procuro apoio naqueles que defendem a tese de que o homossexual tem necessidades de se desenvolver dentro de uma realidade contrária a esta” (LAMPIÃO, 1978, p.5). Talvez indicando a necessidade que iria ao encontro, um pouco mais tarde, do desenvolvimento e aplicação constantes das Teorias Queer.

02 - Capa da edição experimental - N° 0 -
jornal Lampião da esquina

De fato, a representação do homossexual aparece de forma bem tensionada, na sessão Tendências por exemplo, aparece o artigo Três vezes Darcy Penteado, que fala de três projetos do artista pela cidade, dentre eles uma peça teatral chamada a engrenagem do meio, onde um dos três protagonistas é um travesti. Pode-se retirar o seguinte trecho da reportagem: “nela a temática homossexual é tratada de maneira séria, direta, e os personagens são pessoas comuns, não caricaturas ou “doentes” mentais, como tem acontecido sempre em peças do gênero. (LAMPIÃO, 1978, p. 13). E em diversos locais do jornal o vocábulo irmãos, clama por união e tomada de autoconsciência coletiva. “Sabe, digo isso porque é difícil um homossexual sem a carga de maldição que lhe impuseram.” (LAMPIÃO, 1978, p.7).

Havia o forte entrave da censura à grande imprensa. Na imprensa brasileira o único jornal de grande circulação que abordava a homossexualidade era o Jornal Notícias Populares, jornal conhecido por sua abordagem sensacionalista ao extremo, de vocabulário depreciativo e que trazia temáticas principalmente ligadas a violência, crime e sexo (LAMPIÃO, 2016), ainda, João Silvério Trevisan afirma que quando a palavra “lésbica” aparecia na edição da Folha de São Paulo, eles cortavam e escreviam “feminista. Esses eram, portanto, fatores desfavoráveis as discussões de gênero e representatividade GLS. 

          A saída a censura era editar jornais alternativos – a chamada imprensa nanica. Um dos nomes mais relevantes do jornalismo nanico era o Pasquim (falar mais). Entretanto, o cineasta Luiz Carlos Lacerda afirma que ele tinha um corpo editorial extremamente machista e homofóbico. Havia também jornais mimeografados, de baixíssima circulação, como o Eros (LAMPIÃO, 1978, p. 5) e o GENTE GAY (LAMPIÃO, 1978, p.14). Nessa conjectura, em 1976, no breve período de dois meses, no Jornal da Última Hora, o ousado buscou instaurar-se através da Coluna do Meio. De “cunho informativo social e burlesco” (LAMPIÃO, 1978, p. 6) promovendo o “encontro” de ideias dispersas, pela falta de espaço, para se discutir a temática homossexual. Na época, recebia de 30 a 40 cartas por dia. Apesar disso, Celso Curi, jornalista idealizador da coluna, acabou demitido, recebeu ameaças (LAMPIÃO, 2016), e foi processado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (LAMPIÃO, 1978, p. 6). A reportagem sobre o acontecimento, ocupa três páginas desta edição de nº 0, e reporta se tratar do primeiro processo contra homossexualismo na história judicial do Brasil. De um lado, evidenciando os entraves políticos e sociais da época, e de outro, demonstrando a crescente relevância da temática.

Portanto, o Lampião não foi o primeiro jornal para o público homossexual, mas foi o primeiro, a tratar da questão estrutural da linguagem que sustenta as relações sociais e a visão do homossexual na sociedade brasileira sob uma ótica crítica, ou seja, foi o primeiro a abordar a sexualidade de maneira pontual no Brasil. (SANTOS, 2015, p. 136). Cada edição teve uma circulação de 10 a 15 mil exemplares em todo o país (FERREIRA, 2012. p. 4).

NAS RUAS

Na época, os travestis e homossexuais eram marginalizados de forma violenta. O documentário Lampião da Esquina da diretora Lívia Perez, ainda no primeiro minuto, mostra uma reportagem do começo da década de 80 onde entrevistados afirmam coisas como “eu acho que não deveria existir homossexual”, outro fala “acho que deveria acabar de um jeito ou de outro, prendendo... matando...”, enquanto um outro entrevistado ao ser questionado se ele acha que devem matar travestis, afirma que “se a lei permitir.... seria uma boa”. O filme pode ser conferido abaixo:



          Vale ainda ressaltar outros assuntos que aparecem nessa edição como: prisioneiros de consciência e o “apoio moral” da Anistia; homossexuais nos campos de concentração, como eles eram distinguidos e o apagamento da temática na memória coletiva; contos e poemas; tendências em voga (marcava uma sessão); sexualidade de figuras emblemáticas da política; “marginalização” do gozo feminino e do gozo homossexual; inseminação artificial em casais de lésbicas; arte erótico-homossexual brasileira, os limites entre erótico e pornografia, e os parâmetros que formulam o estatuto moral/imoral.  E na seção Cartas na Mesa: Homossexualismo no futebol, TV-Globo estereotipando a representação de seus atores como mais “viris” do que realmente são, expectativas sobre a revista, solicitações de fotos de homens nus, reclamações, queixas contra a polícia, e até desabafos.

REFERÊNCIAS:

FERREIRA, Carlos. Imprensa Homossexual: Surge o Lampião da Esquina. Revista Alterjor 1(1), São Paulo, 2012. P 1-13.

HEEREN, José Augusto de Castro. O armário invertido: comunicação e discurso sob a luz de Lampião. 2011. 238 f. Dissertação (Mestrado)- Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação, São Paulo, 2011. p. 45-49.

LAMPIÃO da Esquina. Lívia Perez. São Paulo, Doctela/Canal Brasil, 2016. Disponível em: Lampião da Esquina - Agnus Guei do Labedisco

LAMPIÃO DA ESQUINA. Rio de Janeiro. Editora Lampião, circulação restrita, nº 0, 1978.

PERET, L.E.N. Pegação, Cidadania e Violência: as territorialidades do imaginário da população LGBT do Rio de Janeiro. In: Revista Contemporânea. Ed. 14. Vol. 8. Nº 1. 2010.

SANTOS, Wendel Souza.  O movimento LGBT no Brasil (1978- 1981): um estudo sobre o Jornal Lampião da Esquina. Temática. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/tematica/article/view/25245/13733.

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