sábado, 8 de abril de 2017

Há controvérsias

 A Revista Época publicou online agora em abril uma matéria com o seguinte título: 
Lei obriga os museus brasileiros a tomar mais cuidado com seu acervo [ver completa]

 (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)

Em tempo, queria dizer algumas coisas. Tornou-se um clichê que as matérias que abordam o patrimônio cultural recorrentemente partam de pautas calcadas na polêmica e na denúncia. É desagradavelmente irônico que se mencione o estatuto dos museus numa matéria assim, e nos 8 anos em que está em vigor não deva ter sido citado em matérias que abordassem seus efeitos positivos. Não quero varrer as falhas para debaixo do tapete, mas simplesmente analisar a forma como a grande imprensa cobre esses assuntos. Como formadores de opinião que são, esses veículos perdem sistematicamente a oportunidade de levar ao cidadão uma informação mais qualificada a respeito do trabalho que é feito pelas pessoas que atuam no Ibram, nas instituições museológicas e outros órgãos que atuam no campo do Patrimônio. Adoram também se autopromover lançando mão do que na verdade foi realizado justamente por aqueles que criticam. Vejamos:

 "Assim foram criadas relíquias como a forca que matou Tiradentes, a espada que Pedro I ergueu no Grito do Ipiranga, a farda usada por Marechal Deodoro na Proclamação da República, criações que a reportagem de ÉPOCA tenta desmistificar ao longo desta reportagem."
A forma como o texto é redigido dá a entender que a desmitificação dessas relíquias é fruto da reportagem, e não que é um trabalho feito há décadas por inúmeros pesquisadores, ao qual a reportagem está tendo acesso por entrevistas ou pesquisas (não quero generalizar aqui, mas repórter de hoje não faz pesquisa, liga pro pesquisador, pergunta o que quer saber, só escreve se gostou da resposta, nem sempre fala obrigado e muito menos cita quem lhe forneceu a informação). Há um tremendo equívoco na redação mesmo, pois basta ler a matéria para perceber que o questionamento sobre o objeto está sendo feito na própria instituição. Mas aqui sejamos francos. Os museus falham absurdamente em levar esse conhecimento, esse questionamento sobre seu acervo, as lacunas de documentação e inconsistências da aquisição para o público. Não conseguem muitas vezes ver que uma abordagem crítica desses artefatos e da forma como passaram a figurar em seu acervo e exposições seria formadora de uma forma que a reverência acrítica e acobertada por narrativas nebulosas jamais pode ser.
Outra coisa irritante é como adoram imputar tudo à instância pública, como se não houvessem várias instituições privadas que incorressem nessas mesmas falhas - e talvez a maioria delas, muitas vezes laudatórias porque foram criadas para exaltar pessoas, empresas, grupos sociais específicos que costumam ser seus patrocinadores.
Mas essas não são, nem de longe, as principais controvérsias a serem abordadas quando se trata dos museus brasileiros. Por mais que tente a matéria não consegue evitar o senso comum e uma visão meio fetichista, concentrada na suposta autenticidade que poderia ser apurada dos itens que elenca.Ora, sendo assim, se a espada fosse comprovadamente de D.Pedro I, por exemplo, a construção de uma interpretação sobre a Independência poderia continuar lançando mão da relíquia 'autenticada'? Mesmo picotadas pela impiedosa edição que comumente as redações aplicam às falas dos especialistas, podemos entrever nos trechos que restaram que o posicionamento dos profissionais é crítico e revela, ao contrário do que a matéria insinua desde a manchete, que não é ter ou não a lei que faz o museu reinterpretar seu acervo, e sim a atuação de pessoal capacitado e comprometido, especialmente se tiver boas condições de trabalho. O que a matéria apura, em relação a isso? 
A controvérsia mesmo, a meu ver, recai sobre o sentido social e político das instituições, no caso com o foco da matéria recaindo um pouco mais para os museus históricos, e, portanto, para as interpretações da História do Brasil que eles ajudam a produzir e difundir. Seria realmente querer demais que a revista conseguisse elucidar para o leitor a compreensão atual que historiadores, museólogos e demais profissionais envolvidos nesse trabalho desenvolveram sobre o que é o resultado das investigações em História e como a controvérsia e o embate de interpretações são constitutivas do que será a sua narração, e que, muito mais que autenticar o que quer que seja, o objetivo maior é auxiliar o público a desenvolver a capacidade de refletir sobre como e porque uma determinada versão do passado é produzida, como os artefatos compõem as tramas, e como o conhecimento da História é transformado por meio de incessantes contestações baseadas no estudo das evidências.

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