quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Tempo e patrimônio na Grécia



Um trecho do texto que apresentei na última terça-feira na Casa do Baile:

Michael Herzfeld, em seu livro A Place in History: Monumental and Social Time in a Cretan Town considera que “entre o tempo social e o monumental está posto um cisma discursivo”. O tempo social remete ao cotidiano, à experiência diária, é aberto e imprevisível. O tempo monumental, ao contrário, é redutivo e genérico. Ele descreve eventos como realizações de destinos supremos e reduz a experiência social à previsibilidade. Seu foco principal é o passado, um passado constituído por categorias e estereótipos. Nas suas formas extremas, representa o enquadramento temporal do Estado–Nação (HERZFELD, 1991, p.10).
A reavaliação do passado grego tem promovido a reconstrução do patrimônio clássico como caminho para a identidade européia (p.11). Os discursos hegemônicos tendem a enfatizar essa aproximação e simultaneamente demonizar o Oriente. Como demonstra Stavros Stavrides em seu texto Urban Identities: Beyond the Regional and the Global. The Case of Athens, nas Olimpíadas de 2004 enfatizou-se o duplo movimento de alçar Atenas ao padrão das grandes cidades modernas e globais européias, ao mesmo tempo em que se enfocou a particularidade, a “localidade” de sua identidade como “berço da civilização ocidental”. (STAVRIDES, 2008, p. 578). Desde o princípio, já que Atenas foi escolhida capital do nascente Estado Grego moderno, foram feitos esforços para destruir edificações e sítios que pudessem indicar um passado complicado, cheio de rupturas e hibridações. Apenas os monumentos clássicos e Bizantinos eram vistos como apropriados para definir A Atenas do XIX como herdeira da Atenas clássica. (STAVRIDES, 2008, p.579). 

Promoveu-se a unificação dos sítios arqueológicos com séria de áreas verdes e calçadas. Continuidade espacial estabelecendo uma continuidade histórica. As qualidades únicas da cidade são mediadas por uma teatralização seletiva do passado. Por outro lado, a estratégia de construir a identidade contemporânea da cidade implicava em levá-la em uma direção aparentemente oposta, pois precisava apresentar ambientações urbanas modernas reconhecidas como similares às de outras grandes cidades globais, familiares a turistas e cidadãos das metrópoles ocidentais. Emprego da arquitetura de grife. Stavrides identifica dois gestos neste sentido: O teto do Estádio Olímpico, projetado por Calatrava em contraponto aos prosfygika (edifícios modernistas) encobertos pelo “placar” com imagem panorâmica de Atenas incluindo os monumentos mais conhecidos. Jogaram a capa de um cenário espetacular sobre as edificações portadoras de um vocabulário arquitetônico considerado fora de moda. Enquanto os edifícios modernistas remetem a apropriações e identificações que compõem a história de Atenas, a imagem do painel remete a uma Atenas atemporal, de cartão postal para turista. Identificado a uma cultura global de consumo. Enquanto os edifícios modernistas remetem à racionalidade e eficiência, de custo mais baixo, o teto de Calatrava remete a um novo universalismo, o universalismo do consumo, está focalizado na aura do dispêndio.   
Isso pode envolver a valorização e recuperação do patrimônio de valor histórico e cultural, mas incorporado duplamente nesse movimento que o globaliza como espaço estandartizado de lazer e consumo e que o relocaliza como afirmação da identidade e da tradição em viés essencialista e fetichizado (LEITE, 2007, p. 292). Vemos nessa proposição uma chave importante para entender como uma política que ainda podemos considerar “fachidista” ou “tradicional”, perdura, ainda que reinserida numa nova lógica, o que Carlos Fortuna (1997) denominou “conservação inovadora do elemento tradicional” (apud LEITE, 2007, p. 65). Dessa forma os vestígios do passado apresentam-se em forma de pastiche, o que resulta num paradoxo constatado por Hartog (2013, p. 234): “(...) o mais autenticamente moderno hoje seria o passado histórico, mas colocado nas normas modernas. No final das contas, conservam-se apenas as fachadas”.
Esses mesmos jogos de força em torno do patrimônio podem ser vistos no caso do relativamente novo Museu da Acrópole. Sua abertura em Atenas (jun.2009) acrescentou uma nova urgência ao debate de 200 anos em torno das esculturas do Partenon. Os administradores do Museu Britânico deram uma resposta preventiva, deixando clara sua posição de que o novo museu não mudava sua visão de que as esculturas são parte do patrimônio compartilhado de todos e transcendem as fronteiras culturais (MARSHALL, 2012, p.34)

Em seguida, o arquiteto responsável pelo novo museu, Bernard Tschumi, mudou o tom do discurso que antes era pautado pela restituição ou repatriamento cultural, enfatizando somente um desejo de contribuir para a reunificação do Friso do Partenon. No Museu da Acrópole as esculturas originais que ainda permanecem em Atenas são expostas em combinação com réplicas que indicam a localização das demais porções.  Em seu ensaio sobre o tema,

 Athens, London or Bilbao? Contested narratives of display in the Parthenon galleries of the British Museum, Marshall (2012) considera uma quimera a pretensão de reunir todos os pedaços remanescentes de volta em Atenas.

A ideia de girar o relógio para trás para um tempo referencial num agora distante passado em que as esculturas poderiam estar completas é uma poderosa reivindicação, porém não menos utópica e fatalmente ilusória, tanto quanto o argumento do Museu Britânico de que está qualificado para falar em nome de toda a humanidade e reter as esculturas para o benefício dos cidadãos globais do mundo afora. (MARSHALL, 2012, p.42)

O pavilhão no museu tem uma parede de vidro que o coloca em diálogo com a visão do Partenon. A arquitetura representa a intenção de reunificação das esculturas. 
No Museu Britânico o emolduramento das esculturas promove um contexto expositivo que remete a um templo e à arquitetura do próprio Partenon,  assegurando a sala Elgin como espaço extraordinário/monumental  que prova que o museu e a civilização que o criou está à altura de guardar o patrimônio da antiga civilização mãe. Nas transformações urbanas operadas sob este contexto, sob a fachada da restituição cultural pode estar uma estratégia de dominação econômica e política.
 

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