Assisti recentemente a Mãe! de Darren Aronofsky, diretor de quem admiro vários filmes, como Pi, Réquiem para um sonho, Fonte da Vida e Cisne Negro. Deixei passar um longo depois de algumas resenhas, não muito conclusivas. Gosto do seu cinema porque é cinema em que a imagem está a serviço de uma Visão, ou seja, de uma ideia que é preciso traduzir no que se vê. É dos raríssimos que consegue fazer isso em Hollywood. E por isso ganha de um lado, perde de outro.
O filme tem, num de
seus planos narrativos, a história de uma casa que pega fogo, é
restaurada num esforço de trabalho, e é novamente incendiada num ato extremo induzido por uma
humanidade em frisson barbárico. A história que conta é uma parábola, ou talvez seja a compilação da
bíblia do gênese ao juízo final, ou ainda uma grande alegoria da
sociedade contemporânea. Como em muito de seus filmes ele faz um pêndulo
entre um plano de narrativa épico e outro corriqueiro. Problemas
mundanos do relacionamento de um casal vivendo numa casa de campo são a
metonímia da humanidade em crise incapaz de criar e manter a criação,
incapaz de manter sua casa - a Terra - em ordem, ou num plano maior, a
encenação do drama judaico-cristão em seus impasses entre sagrado e
profano, criador e criaturas. Sua versão concentrada da
história da civilização predatória que geramos é uma ambígua mescla de
eterno retorno com profecia apocalíptica.
Agora fico sabendo dessa
verdadeira desgraça de incêndio completo do bicentenário Museu Nacional, no Rio [matéria de El País] [depoimento de aluna da UFRJ]. Um museu arde em chamas, e nas sombras da noite clamam as vozes dos outros, dos idos, mas andamos cegos e surdos, andamos embebidos em gasolina, em óleo e ódio libidinosos incendiando o futuro do pretérito. É
uma verdadeira alegoria do momento do país, lamentavelmente. Tudo pega
fogo e desaba, por decisões que são resultado direto de uma visão rapace
sobre o Estado, desvios monstruosos de recursos públicos, manutenção de
privilégios absurdos em todos os poderes, e não apenas em esfera
federal, intermináveis isenções fiscais a todo tipo de empresa que
devasta nossa terra, e tudo isso adornado por debates estéreis e um
sistema político decrépito, ainda por cima contestado por uma horda de
fascistas, interesseiros e incompetentes que pretendem simplesmente
aprofundar toda essa ruptura que segue seu curso há vários anos.
Logo virão as desculpas dos responsáveis, o jogo de empurra das
responsabilidades e a imputação à fatalidade, ao acaso ou forças
desconhecidas da 'natureza'. Pesquisei um bocado e certamente se pode
dizer que em qq desastre natural há um componente social - ainda que
este incêndio, após investigações , não se mostre criminoso. Mais leituras para agregar informações e perspectivas:Terra:Museu Nacional: fiação exposta, gambás e cupins entre os alertas ignorados que anunciavam tragédia
EBC: Gasto da União no Museu Nacional caiu mais de dez vezes desde 2011
BBC: Em 2017, mais brasileiros foram ao Louvre, em Paris, do que ao Museu Nacional
Folha/UOL: Nossa elite só se interessa por museu na Europa, diz pesquisador da UFRJ
Podemos diante dela ficarmos emparedados no imobilismo, mas podemos também tomar decisões sérias e consequentes. Temos que olhar mesmo bem dentro do crânio das órbitas cheias de cinzas [vídeo mostrando o interior destruído], e além [vídeo com visita pelo interior antes da destruição] [vídeo doc 200 anos do MN]. Olhar para o passado não para sucumbir ao pesar, mas para fazer o necessário trabalho de luto sem desistirmos da luta [cinejornal de 1956, do Arquivo Nacional]. Temos que parar tudo e reconstruir, com o que temos, o que sabemos, e é preciso, para início da conversa, um grande esforço coletivo porque não há São Sebastião que resolva isso.
Não adianta chorar o leite derramado. Há uma opção pela barbárie, e é isso que temos de combater. Há, nesse exato momento, um incontável acervo, um sem número de museus, e outras instituições que são responsáveis pelo patrimônio cultural e científico brasileiros, à beira da morte, de várias formas, não só por incineração, mas por afogamento, estrangulamento, asfixia. Estão muitas delas a uma distância relativamente pequena de onde vivemos, estudamos, trabalhamos. Está na hora de fazer alguma coisa séria a respeito. Vamos chorar essa perda mas vamos reagir. É precisa uma movimentação nacional. É preciso agendar conversas com todos os candidatos progressistas e cobrar uma agenda concreta. É preciso fazer um diagnóstico imediato dos casos mais dramáticos.
"Em 2017, o orçamento executado do MinC foi de cerca de R$ 552 milhões". Pouco mais do que a receita de um grande clube da série A, por exemplo. Entendeu o tamanho do buraco? "Historicamente, a parte que cabe à Cultura é de uns 0,07% ou 0,08% do orçamento da União". Entendeu? Os invariáveis defensores do estado mínimo, acham que vai acontecer o que com "tudo isso"? Enquanto isso evidente suspeição paira sobre a saída o presidente do IBRAM na sexta anterior [comunicado Minc], o que no mínimo revela muito do estado de penúria e visão equivocada da Falta de política de cultura nesse país. Já passou muito da hora de colocar certos pingos nos is. E nesse
sentido, gostaria de acrescentar, além do que já disse à Rádio UFMG, o que escrevi comentando as
recorrentes argumentações que pretendem jogar todo o peso do incêndio do
MN no colo do Golpe - ainda que os cortes recentes sejam mesmo
gritantes. O fato de reconhecer ganhos não é incompatível com
fazer críticas responsáveis cuja finalidade, a meu ver, não é
desmoralizar nem desconsiderar o que foi feito em períodos anteriores.
Acho equivocado e esquivo esse recurso
de um "álibi" propiciado por candidaturas mil vezes piores para se
justificar que não se faça críticas ao PT. Que democracia almejamos? Que
tipo de intelectuais somos se nos furtamos a discutir, com propriedade
de causa, as políticas públicas, seus acertos e erros? Correr disto é
nivelar por baixo, ainda mais porque são críticas sérias. Discutir
orçamento não se reduz a constatar um aumento ou diminuição do montante
total. Temos que ir muito mais a fundo. Nem todos esse milhões, afinal,
poderiam repor o que foi perdido no MN domingo, só pra dar um exemplo.
Se não tivermos a capacidade de compreender os erros em toda sua
extensão, estaremos queimando o museu uma segunda vez, porque diante
dessa perda temos a obrigação de evitar - ou fazer tudo ao nosso
alcance, pelo menos - que outras aconteçam. Para o entendimento das questões de administração pública, universitária, políticas de cultura, funcionamento de Lei Rouanet e as decisões sobre o que financiar, complemento com as pontuações dos professores Carlos Fico e Wilson Gomes, a matéria do Lupa (uol), da BBC, El País e Uol, esta última com oportunas considerações sobre o Museu do Amanhã.
Nem o
incêndio do Museu da Língua Portuguesa (de consequências bem menos
dramáticas , aliás) serviu de aviso. Nem as intempéries anteriores do próprio museu [matéria da Folha SP]. Vale ver a matéria da Record. Acho que nunca na vida escutei a palavra 'museu' ser dita tantas vezes,
em tantos lugares. De uma forma difusa, e pouco informada, as pessoas
tateiam o assunto mas se mostram, via de regra, sensíveis à perda e com
um pouco mais de disposição para saber do que não conhecem. Disse à
reportagem do Hoje em dia que diante desta perda irreparável "a
sociedade agora deve refletir sobre o quanto o cuidado com o patrimônio é
um tema central nas agendas políticas dos próximos anos”. É assim que
devemos interpelar o público enquanto o calor de chamas tão terríveis
não se dissipa, pois só assim podemos ter algum desdobramento
consequente após essa desgraça. Antes que eu me arrependa, mesmo que no calor dessa hora, na
consternação do luto, é preciso dizer o seguinte: não é o primeiro nem
último museu do mundo que pega fogo. Há cidades inteiras que foram
abaixo, destruídas por guerras, bombas atômicas, vulcões, tsunamis.
Patrimônio e vidas incalculáveis se perderam. Não há retorno. Não se
trata de atenuar nada. Isso não é possível. Não se trata de desculpar
quem ou que quer que seja. Quem sejam apuradas as devidas
responsabilidades, mas com muita atenção
para evitar os bodes expiatórios. Se trata de tirar o sentido político
profundo do âmago dessa catástrofe anunciada.
Podemos diante dela ficarmos emparedados no imobilismo, mas podemos também tomar decisões sérias e consequentes. Temos que olhar mesmo bem dentro do crânio das órbitas cheias de cinzas [vídeo mostrando o interior destruído], e além [vídeo com visita pelo interior antes da destruição] [vídeo doc 200 anos do MN]. Olhar para o passado não para sucumbir ao pesar, mas para fazer o necessário trabalho de luto sem desistirmos da luta [cinejornal de 1956, do Arquivo Nacional]. Temos que parar tudo e reconstruir, com o que temos, o que sabemos, e é preciso, para início da conversa, um grande esforço coletivo porque não há São Sebastião que resolva isso.
Não adianta chorar o leite derramado. Há uma opção pela barbárie, e é isso que temos de combater. Há, nesse exato momento, um incontável acervo, um sem número de museus, e outras instituições que são responsáveis pelo patrimônio cultural e científico brasileiros, à beira da morte, de várias formas, não só por incineração, mas por afogamento, estrangulamento, asfixia. Estão muitas delas a uma distância relativamente pequena de onde vivemos, estudamos, trabalhamos. Está na hora de fazer alguma coisa séria a respeito. Vamos chorar essa perda mas vamos reagir. É precisa uma movimentação nacional. É preciso agendar conversas com todos os candidatos progressistas e cobrar uma agenda concreta. É preciso fazer um diagnóstico imediato dos casos mais dramáticos.
Só nos resta, com gosto amargo na boca, fazer dessas chamas um farol.
https://theintercept.com/2018/09/05/hipocritas-choram-museu-nacional/
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